O Caso da Coruja


 

(J. C. Peu)


Esta reportagem bem que poderia ser um conto por todo o seu teor passional; poderia igualmente ser uma fábula, posto seu tom simbólico. Mas, nem conto nem fábula, esta reportagem é notícia, pura e simplesmente notícia.
O senhor Coruja, morador do velho ipê roxo, num acesso de fúria, atirou contra um grupo de jovens que estavam reunidos perto de sua árvore e veio a matar um deles, um dos filhos do meio do Sr. Hiena; além de deixar também mais dois feridos, dois jovens macacos de duas famílias conhecidas e respeitadas de macacos. O Sr. Coruja após o ocorrido entregou-se ao delegado da floresta, o Sr. Leão. Este, soltando fogo pelas ventas de raiva e indignação por tamanha atrocidade, quase devorou o Sr. Coruja quando ele disse que só falaria alguma coisa a respeito do crime na presença do seu advogado.
Se tudo dependesse do leão, se ele fosse mesmo o rei da floresta, coitado do Sr. Coruja. Cá para nós, todo mundo sabe que o Sr. Leão é velho conhecido do Sr. Hiena,o pai do morto, e até dizem que ambos foram ou ainda estão envolvidos em negócios suspeitos, deixemos quieto este assunto, o fato é que o Sr. Coruja deve dar graças a Deus que um animal qualquer inventou direitos e leis, pois se não fosse isso, “era uma vez” uma pobre coruja.
Graças a liberdade de expressão e também a algum dinheiro que eu trazia no bolso, consegui ter acesso aos bastidores deste caso. Sabemos que muitos funcionários da lei são ratos facilmente corruptíveis. Nenhum repórter da concorrência foi testemunha ocular do que se passou na delegacia como eu fui, então, com exclusividade relato-vos agora todos os pormenores deste caso intrigante.
O delegado rugia ameaçador andando de um lado para outro, vomitando ameaças para o Sr. Coruja. O leão por natureza gigantesco em comparação com a coruja, e todos os outros animais de pequeno porte, parecia ainda maior. O tatu, que era o escrivão na delegacia, tinha muito medo do chefe quando este ficava nervoso desta forma e tremia tanto que cheguei a pensar, em dado momento, que ele teria um ataque cardíaco a qualquer instante. A coruja, pobrezinha, estava de cabeça baixa e totalmente descorada. Qualquer um notava que ela lamentava muito o que havia feito. Porém, não impressionava nem um pouco o colérico leão, que repetia a todo tempo aos berros: “Não vou me deixar levar pelas aparências! Conheço animais deste tipo, são uma corja de sonsos!”
Não me parecia que a coruja fingia. Parecia-me mais que ela estava profundamente  envergonhada. Não tinha medo. Definitivamente não era o medo que a fazia permanecer de cabeça baixa enquanto ouvia todos os impropérios deste mundo. Sentia apenas vergonha por ter difamado o bom nome de todas as famílias de corujas da floresta e o seu próprio. Bem no átimo de tempo enquanto eu fazia estas anotações e pensava na linha tênue que separa um animal de respeito de um criminoso, chegou na delegacia o Sr. Raposa, advogado da família do Sr. Coruja. Cá para nós, esta família, a das raposas, é uma família que contém um número enorme de malfeitores em suas fileiras, mas, mesmo assim, sempre costumam posar como grande defensores da lei.
Rapidamente foram feitos os preparativos para o depoimento do Sr. Coruja. O semblante do delegado se iluminou e ele ficou radiante de um instante para o outro. É verdade, vi até um sorriso macabro no canto direito de sua bocarra. Era como se ele dissesse com todas as letras, sem, no entanto utilizar nem sequer uma palavra, que a coruja não tinha como escapar das suas garras.
Quando todos estavam preparados para ouvir o depoimento da coruja, ela disse: “Falo somente após beber um copo com água”. Estas palavras foram um balde de água fria derramado sobre a cabeça do delegado, que falou, peremptoriamente, em um tom de voz elevado: “ O senhor acha que está em um bar por acaso?”
O Sr. Coruja, nem um pouco assustado com o rugido do leão, chilreou impávido: “Pois , eu só falo após beber um copo de água”. Foi algo muito interessante ouvir um barulho pavoroso como o som de um trovão ser respondido com firmeza por uma leve brisa primaveril. Nisto o rábula levantou-se em favor do seu cliente e disse que ele tinha sim o direito de beber água.
“Tragam então um copo D’água”, bramiu onipotente o delegado para um de seus muitos puxa-sacos de carteira assinada. Logo, uma anta, que devia ser um detetive, investigador, ou qualquer outra coisa que o valha, já que na floresta nenhum crime é investigado de forma séria, trouxe um jarro imenso, bem próprio para leão matar a sede. Mas, como a água não era para o delegado e sim para a coruja, tinham que encontrar um recipiente menor ou nada de depoimento.
O leão, irritando-se novamente, começou a andar de um lado para o outro, bufando, como que procurando alguma coisa que perdera em meio a tamanha agitação.
Era inevitável, quando o chefe ficava um pouco mais exaltado o Sr. Tatu, o escrivão, começava a tremer. Tremia como vara verde. Tremendo mesmo teve uma idéia. Ofereceu seu próprio copo para que a coruja bebesse água e para acalmar um pouco os ânimos do delegado.
O copo não era o ideal. O tatu tem focinho fino e alongado, enquanto que a coruja tem uma cara batida e o bico pequenininho. Entretanto, era o que se tinha. Foi dada finalmente água para a coruja.
Era visível a dificuldade que ela enfrentava para beber água, mas, além desta dificuldade por demais evidente, havia junto uma demora proposital. Ela pegava o copo e levantava-o até o bico com uma solenidade fingida. Sorvia demoradamente um pequeno tanto diminuto e, novamente levantava os olhos para ver a reação que seu ato causava nos observadores.
Os olhos do leão soltavam fagulhas e após a quarta repetição deste ato maçante pela coruja, ele bramiu colérico um caminhão de imprecações que fizeram todo meu corpo arrepiar-se e minhas penas ficarem eriçadas, mas a coruja, nada. Nenhuma reação. Nem parecia que tudo aquilo era com ela e para ela, continuava com seu olhar de peixe morto.
Como a coruja destemidamente ousou repetir o mesmo ato uma quinta vez, o leão precipitou-se e agarrou-a pelo pescoço com sua pata avantajada, e ia mesmo estrangulá-la, se todos os ali presentes não tivessem pulado sobre ele. Não foi nada fácil fazer com que o delegado soltasse o Sr. Coruja, mas conseguimos após muito esforço e muita gritaria.
Se passaram uns bons dez minutos nesta cena: A coruja arfando em um dos cantos da sala e o leão bufando em outro, possesso com o culto das aparências e com os fios invisíveis que o prendem a convenções e regras criadas por animais que, com certeza, não passaram por situações tais como esta e que o impedem de fazer o que realmente deseja.
Chamando toda atenção para si a coruja, ainda respirando com dificuldade, disse: “Estou pronto para falar.” Todos os olhos naquela sala fixaram-se nela, que continuou: “Não por medo, mas por ver, devido a reação do senhor delegado, que muitos animais tem menos paciência que eu.”
A coruja tinha uma das pernas maior que a outra e, mancando, jogando o tronco para frente e para trás, foi até o meio da sala. Seu andar claudicante fez com que todos procurassem se acalmar. Até então, ninguém havia notado esta deficiência, prestando mais atenção ao crime cometido do que nela como animal.
Sem pigarrear a coruja começou a falar: “Como os senhores podem notar, sou deficiente físico. Desde que me entendo por animal e ser pensante sou assim. Há coisas na vida que precisamos apenas nos acostumar, eu me acostumei a isso desde bem pequeno, mas, os outros animais parece que nunca aprendem que no mundo existem muitos animais que são diferentes e que não precisam ser hostilizados nem de esmola, mas sim de respeito. Eu poderia falar durante  muito tempo sobre minha infância, mas, não quero receber a pena de vocês como esmola.”
Uma pausa para recobrar ar, encontra o silêncio de todos os espectadores ávidos de ouvirem mais. Ela prossegue: “Moro a um ano e dois meses no ipê roxo. Desde quando mudei para lá, um grupo de jovens animais reuniam-se com freqüência para zombarem de meu jeito de andar. Eu não podia ir até a banca de jornais sem ouvir incontáveis zombarias. Isso me entristecia e me deixava muito zangado. Procurei os pais de vários deles, mas nada foi resolvido e meu tormento continuou. Minha esposa dizia sempre para eu ter calma, isso não era nada fácil. Durante meses eu fiz ameaças, mas ninguém acreditava que eu seria capaz de realiza-las, pra dizer a verdade, até eu mesmo duvidava. Um dia eu comprei uma arma, minha esposa nunca soube disso. Se soubesse desaprovaria completamente. Ela sempre diz que recorrer ao uso de armas é a forma mais fácil que os animais ignorantes  encontram para resolver seus problemas. Hoje pela manhã fui até a padaria, parei para comprar o jornal, e quando estava retornando, este mesmo grupinho de sempre surgiu e começaram a gritar todas as minhas alcunhas de sempre e mais uma nova: “Deixa-que-eu-chuto”. Eu simplesmente perdi o controle dos meus atos. Entrei, o mais rápido que pude, peguei a arma que havia comprado e estou aqui na presença de vocês neste dado instante.”
A coruja até este ponto tão controlada e serena, entregou-se inconsolavelmente ao choro. Não sei como ao certo, mas, isso me modificou. Creio que nenhum dos presentes foi o mesmo depois disso.
O leão, mais calmo, percebeu a minha presença na sala e pediu polidamente que me retirasse e, pelo que foi divulgado depois, a coruja está presa aguardando o julgamento que foi marcado para brevelo que foi divulgado mente que me retirasse e, p estou  de sempre Surgiu .
Sr. Papagaio para o jornal  A Voz da Floresta.


A seu tempo a coruja foi julgada e recebeu, no entanto, uma pena branda. O Juiz e os Jurados chegaram à conclusão que a sociedade é mais culpada por este crime do que a própria  coruja.

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