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Mostrando postagens de 2014

O Feriado

O feriado Existem pessoas que tem a invejável sorte de estar sempre no lugar certo, na hora certa. É lógico que esta sorte a que me refiro não se trata de uma força que regula tudo o que acontece na vida, o destino, fado ou fatalidade. Apenas refiro-me ao mero acaso, puro e simples. O que domina o universo físico é o acaso, mesmo que na maioria das vezes que nos referimos a ele nós o chamemos de sorte. Há, também pessoas que infelizmente têm, vez por outra, o desprazer de estar no lugar errado, na hora errada. “Má sorte”, para não dizer de forma direta, azar. Se nós generalizarmos, o que chamamos de azar não é outra coisa se não o próprio acaso. Até este dado momento eu não sei em qual destes dois grupos me incluiria. Se no grupo dos sortudos, ou no grupo dos azarados. Talvez, nem bem em um, nem bem em outro, mas, entretanto, em ambos. Na verdade, eu estou mais para um terceiro grupo. O das pessoas que acreditam apenas no acaso. No feriado de sete de setembro último, participei co

O Juiz

O Juiz             Deixa eu passar esse vacilão. – Dizia num tom de clemência um garoto que tinha não mais que treze anos de idade, ao dizer estas palavras, não estacava para ouvir o som de sua própria verberação, ao contrário, gesticulava com uma pistola na mão direita, apontando hora para o rosto de Rogério, hora para os céus, hora para o chão.  Ao mesmo tempo, um outro garoto, apenas um pouco mais velho que o primeiro, aproximou-se de Rogério e disse ao seu ouvido numa altura suficientemente boa para que todos os outros ao redor ouvissem:               -Você está com medo? Você tá tremendo? Na hora de fazer besteira tu não pensou, otário! Um outro garoto dizia querer dar um tiro em cada uma das mãos de Rogério, e pedia permissão a um homem que dividia com Rogério o centro das atenções. Sentado num banco de madeira em baixo de uma árvore no terreiro de uma casa modesta no alto de um morro, tal homem representava para os ali presentes o papel de juiz. Não portava nenhuma arma,

Como se Prepara um Marinheiro

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Como se Prepara um Marinheiro João Antônio era marinheiro da marinha mercante brasileira. Por isso, viajava Brasil à fora e América Latina à fora também. Geralmente não demorava nos portos em que aportava, mas em algumas cidades ficava muitos dias, em outras ficava mesmo meses. Seus amores eram como se fossem uma extensão natural do seu trabalho, havia vezes que amava alguns dias um amor tão avassalador e profundo que só era esquecido com a chegada, numa outra cidade, de um outro amor avassalador e profundo que duraria por sua vez, até o recebimento de nova designação no trabalho. João Antônio já estava acostumado com a fugacidade de seus amores. Fora amado e amara uma mulher chamada Rose em Salvador, outra que chamava-se Cláudia em Porto Alegre, Conceição no recife, Amélia em Santos, Núbia em Natal, Carolina no Rio de Janeiro, et cetera, que pensara saber todos os meios possíveis e impossíveis de se abandonar uma mulher, sem com isso sofrer emocionalmente. Pensava ser um mestre

Feliciano Eustáquio de Souza

Feliciano Eustáquio de Souza Se alguém perguntasse a meu querido avozinho qual era o seu nome, ele não se contentava em responder apenas Feliciano ou senhor Feliciano. Sempre respondia seu nome completo: Feliciano Eustáquio de Souza. O nome era como se fosse um troféu para ele. Sempre dizia que era pobre sim, mas, tinha o nome limpo, limpo como o céu dos dias de dezembro e que a única coisa que tinha na vida era o seu bom nome. Eu sempre retrucava de forma irônica que se Feliciano Eustáquio fosse um bom nome, eu tinha um nome de rei. Eu não zombava do vovô por não gostar dele, muito pelo contrário, eu implicava com ele com ciúme do meu irmão mais velho que era o queridinho do vovô  e recebia dele muito mais de seu carinho e atenção que eu. Meu avô foi roupeiro do Botafogo por muito mais de vinte anos e não havia nada no mundo que ele gostasse mais que futebol. Ele falava demoradamente de nomes como Ademir da guia, Dada Maravilha, Rivelino, Pelé e por ai seguia numa longa lista de

O Sonho

O Sonho Acordou assustado com o rosto molhado  de suor. Com o esforço que fez para acordar, levantou com tanta força e velocidade que jogou longe o lençol que o cobria e fez a cama lançar um lamento esganiçado. Tomou fôlego, parecia muito cansado, deu uma olhada a sua volta e viu que estava em seu quarto. Só podia ser o seu quarto pois tinham os mesmos móveis, os mesmos quadros na parede e até da mesma cor era a tinta que revestia o reboco. Então, por quê por mais que tudo seja familiar, é também diametralmente estranho não só para seus olhos, mas também seus outros sentidos? Não sabe. Um grito estridente rompe o torpor em que estava envolto e chega até seus tímpanos trazendo-o de volta à realidade. Era o bebê. O bebê chorava praticamente vinte e quatro horas por dia, raro era não ouvir seu choro. Esperava ouvir o próximo grito, o da mãe mandando-o levantar-se e ir comprar pão. Respondeu mecanicamente, pegou o dinheiro abriu a porta e deparou-se com o mato, que estava quase da altur

Cicatrizes

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Cicatrizes Era inevitável que olhassem para ele em todos os lugares onde ia. Tiquinho tinha  centenas de cicatrizes por todo o rosto e seus braços estavam tão lacerados que não se pareciam com braços de um homem. Alguns achavam que sofrera uma grande queimadura, outros diziam que era o resultado de um grande acidente rodoviário. Não imaginavam que tantas marcas podiam ser o que restou de dezenas de cirurgias estéticas. Sua aparência instigava pena e a pena fazia com que nunca o chamassem por seu nome de batismo, nem mesmo ele lembrava-se de seu nome todo o tempo. Se alguém perguntasse como chamava-se, respondia sem pestanejar, “Tiquinho”. Era um jovem amável apesar de sua aparência repulsiva. Conversava sobre qualquer assunto que se possa imaginar e os mais velhos não cansavam de dizer que ele tinha uma boca de ouro. Não ficava, pelo menos aparentemente, chateado quando sentia que alguma pessoa não queria se aproximar dele talvez por pensar que suas cicatrizes eram resultado de

Eulália

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Eulália Feitosa é como será chamado a partir do momento que vestir pela primeira vez o uniforme cinza da policia militar, não responderá quando o chamarem de Leonardo. Soldado, cabo, sargento, tenente, ele têm uma longa carreira pela frente, e muito entusiasmo para compensar a falta de status da corporação. Têm também uma namorada bonita, de uma beleza dramática e teatral que a tornam perfeita para interpretar heroínas Shakespeareanas. Pena ela não fazer teatro. Em verdade sua namorada, Eulália, nunca entrara em um. Era apenas muito bonita. Antes de conhecer Eulália, Feitosa sonhava conquistar uma linda namorada, arrumar um emprego qualquer para, com o tempo, casar, engordar, ter filhos, envelhecer e morrer tudo na mais perfeita monotonia. Os dois primeiros ele já conseguiu realizar falta apenas casar, engordar, ter filhos, envelhecer e morrer na mais perfeita monotonia. Ou seja ele precisa apenas de tempo para tornar-se um homem plenamente realizado. -Em quanto tempo você compra

Spike e a Liberdade

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Spike e a Liberdade Um amigo de escritório falou pilheriando: “Está pensando na morte da bezerra Francisco?” E, de fato, Francisco estava com um olhar fixo, demorado, para todas as coisas. Estava reflexivo a ponto de fazer com que uma mera assinatura de  recibos se tornasse o evento filosófico do ano. Estava totalmente entregue as abstrações. Tudo por causa do seu cachorro que havia rompido a coleira e ganhado a rua naquela manhã. Não deu ouvido nem a esta nem a outras piadinhas ditas quase a todo instante por seus colegas, afinal, todos escritórios são assim. E, ele mesmo zomba bastante de seus colegas de trabalho vez em quando. Certo dia, inspirado por um tal sentimento inominável, juntou-se a um grupo que zombava de um subgerente e sua serventia. No meio de todos e em voz alta, dirigiu-se  ao subgerente e disse-lhe: -Ora, ora, gente! Não é verdade dizer que o Alberto não serve para nada. Ao menos ele serve de chacota! As gargalhadas soaram estridentes e foi mesmo difícil fa