Spike e a Liberdade

Spike e a Liberdade



Um amigo de escritório falou pilheriando: “Está pensando na morte da bezerra Francisco?” E, de fato, Francisco estava com um olhar fixo, demorado, para todas as coisas. Estava reflexivo a ponto de fazer com que uma mera assinatura de  recibos se tornasse o evento filosófico do ano. Estava totalmente entregue as abstrações. Tudo por causa do seu cachorro que havia rompido a coleira e ganhado a rua naquela manhã.
Não deu ouvido nem a esta nem a outras piadinhas ditas quase a todo instante por seus colegas, afinal, todos escritórios são assim. E, ele mesmo zomba bastante de seus colegas de trabalho vez em quando. Certo dia, inspirado por um tal sentimento inominável, juntou-se a um grupo que zombava de um subgerente e sua serventia. No meio de todos e em voz alta, dirigiu-se  ao subgerente e disse-lhe:
-Ora, ora, gente! Não é verdade dizer que o Alberto não serve para nada. Ao menos ele serve de chacota!
As gargalhadas soaram estridentes e foi mesmo difícil fazer com que todos parassem de rir e voltassem ao trabalho. Só mesmo o gerente com seu rosto carrancudo e jeitão autoritário, depois de esbravejar bastante, conseguiu restabelecer a paz na repartição. O subgerente não mais suportando o assédio moral de seus colegas pediu transferência para uma outra seção onde não mais seria subgerente. Preferia isso a ter de continuar sendo importunado todos os dias.
Por este caso, e por outros patrocinados por ele, Francisco Gomes era conhecido por seu espirito brincalhão. Não se preocupava com zombarias, justamente por este motivo, elas não vingavam com ele.
Todos achavam estranho este fato e pensavam que algo realmente sério acontecera, se não, Francisco jamais estaria assim tão calado. Porém, ninguém queria ser o primeiro a perguntar qual o motivo de tanta solenidade nos movimentos, temendo ser inconveniente. Ficavam olhando de soslaio e pensando com seus botões o que teria acontecido.
Inesperadamente, o primeiro a perguntar alguma coisa foi justamente o chefe, o gerente da seção. Com aquela sua cara de poucos-amigos, bigode grosso e grisalho, como também seus cabelos, um metro e noventa centímetros de altura e mais ou menos uns cento e vinte quilos e uma barriga que justificava o apelido que recebera de seus subordinados, “Barriga de Chope”, o gerente intimidava a todos com sua presença. Logicamente ninguém chamava-o assim em sua presença. Mas, quando não estava fisicamente presente, era “Barriga de Chope” para cá, “Barriga de Chope” para lá. Então, “Barriga de Chope” disse com sua voz grossa e gutural:
- Estás diferente hoje Francisco, o quê houve?
“Estou com medo da solidão”, pensou o interpelado em uma fração de tempo menor que um milésimo de segundo. “Estou com medo de ficar sozinho naquele casarão enorme. Os cachorros  são uma ótima companhia para pessoas que moram sozinhas, muitas vezes eles são melhores que pessoas. Por exemplo, eu preferia mil vezes estar neste instante conversando com ele, do que conversando com o senhor. Mesmo que ele não entenda nem a metade das palavras que lhe falo, prefiro a companhia dele à sua. Embora, muitas pessoas nos entendem muito menos do que um cachorro ou qualquer outro animal.” Evidentemente, apenas pensou estas palavras. As que disse foram outras totalmente diferentes, sem o tom beligerante de seus pensamentos e nem sequer uma faísca de ironia ou sarcasmo.
-Não houve nada de grave, - disse ele encolhendo o ombro - apenas estou  com uma dor de cabeça chata, pequenos problemas domésticos, o senhor sabe como é... –Seu rosto esboçou um inicio de sorriso que implorava condescendência.
“Barriga de Chope” foi complacente e sorriu timidamente, afastando-se sem dizer mais nenhuma  palavra. Gomes compreendera que tal atitude fora até mais do que seria de se esperar do chefe. Da mesma forma que  Francisco não importava-se com seu chefe, ele também não importava-se realmente com Francisco, perguntara por sua saúde apenas para fingir preocupação e não ser considerado uma pessoa má e insensível.
Para Francisco o fato de seu chefe ter procurado saber sobre o motivo de estar preocupado não mudara nada. Continuava pensando o que aconteceria se, ao chegar em casa, descobrisse que nenhum dos vizinhos encontrou Spike e o prendeu na coleira. A possibilidade de prenderem o cão era grande, pois, todo o dia passeava pelas ruas do bairro onde morava com o cão na coleira. Era, um fila brasileiro, manso, muito manso, que parecia sorrir quando os vizinhos do Gomes, que já estavam acostumados com ele, passavam a mão em sua cabeça. Certamente alguém o reconheceu e o prendeu. Certamente.
Francisco achou que o dia demorou um século para passar. O dia inteiro trabalhou pensando se alguém encontrou o pobre do cachorro que se soltou da corrente que o prendia e naquele exato momento devia estar perambulando por algum lugar, se é que algum desconhecido não o pegou para si.
Evidentemente que poderia comprar um outro cachorro caso o seu não mais aparecesse, ou, quem sabe, um gato. Mas, Spike era mais que um cão, era um amigo, e amigos não são descartáveis. Não são coisas ou objetos que podemos facilmente esquecer apenas porque podemos  conseguir outros com facilidade.  Um sofá, um aparelho de jantar, um celular, e milhões de outras coisas podem ser facilmente substituídas, mas não há lojas vendendo amizades verdadeiras.  Assim como não se vendem fé, ética ou amor. E, Francisco na sua preocupação  em se alguém recolheu seu cão da rua, quase não ia meditar nesse ponto.
Pensou de relance no fato de poder comprar um novo cão e ia começar a pensar em outras coisas, mas voltou muito rapidamente a esta idéia, da mesma forma que nós voltamos rapidamente nosso olhar para algo que só depois de um segundo é computado como importante. Podia comprar um outro cão mas não um amigo.
-Não podemos comprar amigos. – Disse ele de si para si, achando confuso o fato de que as frases tão certas de antigamente soarem tão sem sentido hoje em dia.
Os minutos e as horas passaram arrastados até o momento de assinar o folha de presença. Esta era, definitivamente, a melhor hora do dia e hoje ela era aguardada com mais ansiedade que nos outros dias.
Diferente do que sempre fazia em dias comuns, hoje, foi direto para casa. Não parou no bar da esquina, nem na padaria próxima a sua casa, para tomar um cerveja. Fazia isso quase todos os dias, mas, hoje não o fez. Também não teve olhos para as moças que cruzavam seu caminho. Uma delas, já tinha, até mesmo, marcado o horário que ele passava em frente a loja em que  era vendedora. Ficou olhando para ele com um interesse nunca antes demonstrado, mas ele passou absorto em seus pensamentos e nem sequer olhou a vendedora, bonita, muito bonita, que o seguia com o olhar. Ela ficaria muito triste se soubesse que fora preterida por um cão.
Assim era Francisco Gomes: um homem triste e solitário, que, entretanto, vivia em roda de amigos, no escritório, contando piadas e fazendo os outros rir. Ninguém acreditava que Francisco era triste e solitário, todos estranhavam o fato de Francisco não ser casado, apesar de ser um rapagão bem apessoado e ter um emprego razoavelmente bom, mas, daí a ele ser triste e solitário não, não dava para acreditar. Tanto não acreditavam como sequer imaginavam isso.
Ao chegar em casa, algum tempo depois, Francisco ficou ainda mais triste. Ele havia imaginado que ao abrir o portão de casa, trombaria de frente com Spike. Spike balançaria o rabo como um louco, correria de um lado para o outro, festejaria feliz da vida a chegada de seu dono. Seu olhar melancólico iria desaparecer por um pouco de tempo ao ver seu dono entrar pelo portão. Infelizmente este quadro foi apenas um imagem mental, igual aquelas que vez por outra fazemos quando nos ocorre algo triste, que é a porta-voz de um pensamento que nunca nos abandona em momentos de ansiedade: “diga que não é verdade!”, grita este pensamento.
Mas a realidade é dura. Spike não havia retornado. Francisco tomou então um banho, e saiu com intuito de procurar pelo cão na vizinhança. Havia um lugar certo para procurar, devia ir direto à casa de Aninha, uma senhora de seus sessenta e poucos anos, que gostava de brincar todo dia com Spike, nas horas em que Gomes o levava para passear. Certamente Dona Aninha viu Spike vagando pelas ruas, reconheceu-o, e está apenas aguardando que seu dono venha buscá-lo. Isto parece tão certo que Francisco anda rápido e chega a ostentar um sorriso de satisfação no rosto. Mas Spike não está com Dona Aninha, que diz não vê-lo desde a tarde anterior.
Desanimado Francisco continua a procura pelo seu cachorro. Vai até a pracinha umas duas quadras à frente, nem sinal do Spike. Caminha até a veterinária, como vez por outra leva o cão para tomar alguma vacina ou para alguma consulta, quiçá Spike tenha fugido para lá. “Idéia idiota. Onde já se viu um cachorro fugir para uma veterinária.” Pensou ele, logo após receber informação de que nenhum cachorro fugitivo aparecera na veterinária.
Francisco foi até um campo de futebol, um “pet shop” e a um terreno baldio onde algumas pessoas depositam gratuitamente seus lixos e entulhos e não encontrou seu cachorro nestes lugares.
Não havia mais onde procurar, então, Francisco resolveu voltar para casa. Mesmo assim ele ainda continuava com a certeza de que encontraria seu cachorro, é claro que esta certeza já não era tão forte e, evidentemente, se parecia mais com aquela contínua teimosia que vulgarmente chamamos esperança.
Ao retornar para casa, porém, resolveu tomar um caminho diferente  e não utilizar o mesmo itinerário que o fizera chegar ao terreno baldio. Dobrou à direita e depois à esquerda, seguiu em frente uns duzentos metros e chegou até a calçada da pista do canto da  Av. Brasil em direção ao centro da cidade, e continuou a caminhar pensando no cão, nele  próprio, nos carros que passavam em grande velocidade, nas amizades que poderia fazer, enfim, naquele momento pensava na vida, única e exclusivamente na vida.
Avistou o grande letreiro de uma lanchonete “Fast Food” do outro lado da Av. Brasil e começou a salivar e a sentir fome. Atravessou a passarela, foi à lanchonete, comeu, pagou e saiu já bastante conformado com a situação em que estava. Era um homem sozinho no mundo, como antes de ter seu cachorro.
Estava no meio da passarela, bem em cima do vão central, quando ouviu uma freada brusca, o canto de pneus sendo arrastados com violência sobre o asfalto e uma forte pancada. O sangue em suas veias ficou gelado em uma fração de milésimos, o coração começou a bater acelerado e as pernas ficaram paralisadas, além de um arrepio frio ter percorrido toda a sua espinha e seus ossos, e o que é pior, tudo isso aconteceu ao mesmo tempo. Teve o reflexo de olhar para trás pensando estar em perigo, só depois lembrando-se que estava no alto de uma passarela. Olhou para baixo ainda á tempo de ver alguns detalhes do acidente. Um cachorro foi jogado a dezenas de metros de distância, um carro amassou bastante a frente e parte da lateral esquerda foi danificada após colisão com a mureta do vão central , parando no acostamento  a aproximadamente trezentos metros da passarela. O cachorro atropelado era realmente muito grande e pesado.
“Ainda bem que não foi uma pessoa”, pensou ele, indo juntar-se a alguns curiosos que olhavam o corpo do cão que jazia numa poça de sangue. Alguns dos que viram todo o acontecido, contavam para os que não viram sobre como o cachorro foi atravessar correndo as pistas, a velocidade elevada que o carro estava, o prejuízo que o dono do carro terá se o seguro não cobrir este tipo de acidente e todas as outras especulações comuns em locais de acidente rodoviário.
Francisco foi aproximando-se sem nem mesmo lembrar-se que retornava de uma procura justamente por um cão. Apenas começou a ligar uma coisa com a outra quando chegou perto e viu bem a pelagem de cachorro atropelado, idêntica a pelagem de seu cachorro.
Aproximou-se ainda mais e percebeu na coleira, a medalhinha de metal onde havia escrito Spike. Seu rosto mostrava para todos que estava consternado, as pessoas que estavam mais próximas chegaram a pensar que choraria em mais um minuto ou dois. Suava e chegou a cambalear, procurando algum ponto de apoio onde pudesse segurar-se por um instante.
Um rapaz notando toda a aflição de Francisco perguntou-lhe:
          - O cachorro era seu?
Francisco olhou para o rapaz e pensou em como seria trabalhoso enterrar aquele cachorrão, além de poder ser responsabilizado pelo acidente. Poderia ser obrigado a pagar o conserto do carro avariado. Não podia titubear. Esboçou um sorriso e respondeu-lhe:
          - Não, não! Eu apenas fico um pouco nervoso quando vejo sangue.
Virou-se e continuou a caminhar para casa pensando no cão, nele próprio, nos carros, nas amizades que poderia fazer, no outro cão que poderia comprar, em fim, pensando na vida, úprio, nos carros, nas amizades que poderia fazer, em fim, pensando na vida,  única e exclusivamente na vida.

     





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