Eulália

Eulália

Feitosa é como será chamado a partir do momento que vestir pela primeira vez o uniforme cinza da policia militar, não responderá quando o chamarem de Leonardo.
Soldado, cabo, sargento, tenente, ele têm uma longa carreira pela frente, e muito entusiasmo para compensar a falta de status da corporação. Têm também uma namorada bonita, de uma beleza dramática e teatral que a tornam perfeita para interpretar heroínas Shakespeareanas. Pena ela não fazer teatro. Em verdade sua namorada, Eulália, nunca entrara em um. Era apenas muito bonita.
Antes de conhecer Eulália, Feitosa sonhava conquistar uma linda namorada, arrumar um emprego qualquer para, com o tempo, casar, engordar, ter filhos, envelhecer e morrer tudo na mais perfeita monotonia. Os dois primeiros ele já conseguiu realizar falta apenas casar, engordar, ter filhos, envelhecer e morrer na mais perfeita monotonia. Ou seja ele precisa apenas de tempo para tornar-se um homem plenamente realizado.
-Em quanto tempo você compra um carro amor?
-Eu estou calculando um ano ou quem sabe um ano e meio.
-Mas, você não acha um ano muito tempo? O Tel comprou um carro zero em três meses...
-Eu sei mas, o Tel é da Federal e eu sou militar, tem muita diferença.
Eulália finalizava sempre o assunto dizendo com voz lânguida e insinuante:
-Eu não vejo a hora de você comprar um carro só seu para nós ficarmos andando, andando... Dá pra namorar bastante...
Eulália antes de terminar esta frase fechou os olhos e jogou um pouco a cabeça para trás, não havia ninguém mais na varanda, já era tarde mas, se houvesse, adivinharia o que pensava aquele esboço de heroína Shakespeareana, Feitosa adivinhou. Daquela noite em diante ter um carro se tornou um sonho, uma obsessão para ele. Tinha que ter um carro, de qualquer maneira! Lançaria mão de meios lícitos ou até de meios escusos para ter um carro, não para si ou por si, mas para e por Eulália!
Por benevolência, ou quiçá ironia, do destino Feitosa foi designado para trabalhar na Rocinha. Lá existem dois DPO’s, um na entrada e outro no meio da comunidade. Foi-lhe explicado que ambos trabalham sob o sistema de férias e o DPO da entrada da favela têm além do sistema de férias, o direito a bote.
No sistema de férias os policiais do DPO recebem uma féria do tráfico para ficarem de férias, ou seja, não fazerem nada. No sistema de férias com direito a bote, os policiais não perturbavam os pontos de venda de drogas, mas, se os traficantes “dessem mole” eles dariam o bote neles e ficariam livres para barganhar sua liberdade.
Feitosa foi escalado para trabalhar no DPO no coração da favela. A cada plantão em que trabalhava recebia duzentos reais para não incomodar o trabalho dos  vendedores não autorizados  de psicotrópicos. Ficava sentado bem á vontade com as pernas esticadas e pés cruzados sobre a mesa pensando na vida. Em verdade este pensar na vida significava pensar em Eulália. Nenhuma ocorrência para atender. Era o tráfico que resolvia as coisas dentro da comunidade.
Nos primeiros dias de trabalho assustava-se  quando traficantes armados de pistolas e alguns até de fuzil entravam dentro do DPO para beber água gelada no bebedouro, mas os outros policiais acalmavam-no e o explicavam  que isto era normal, pois na casa ao lado do DPO funcionava uma drogaria e pelo vai-e-vem de pessoas nunca tinha água gelada na geladeira. Nessa condição, nada mais normal que os “parceiros” bebessem água aqui no DPO, pois um dos atributos principais da polícia é servir. “Além disso”, diziam os policiais, “os caras são parceiros”. Em contrapartida os traficantes respondiam “É nós na fita mano!”
Como disse anteriormente, Feitosa tinha tempo de sobra para pensar e se o tempo fosse algo palpável, sólido, concreto, ele teria um caminhão de seis eixos cheio de caixas e mais caixas de tempo. Mas, como o tempo não é facilmente palpável na vida real como o é em uma figura de linguagem, Feitosa carregava consigo para cima e para baixo um enorme sentimento de que poderia estar fazendo mais para conseguir realizar mais rápido o sonho de Eulália de ter um carro tão bonito quanto ela.
“Todo  tempo do mundo é pouco para quem não sabe esperar” diz, ou deveria dizer, o ditado. Feitosa pediu transferência para o DPO da entrada da favela, imaginou que lá poderia ter mais oportunidades de conseguir rápido uma verba para concretizar os planos de Eulália.
Passou cinco meses estudando sua situação, conhecendo seus colegas de trabalho, fazendo amizades, pesquisando os vendedores do mercado informal de drogas mais rendosos em caso de bote, enfim: trabalhando duro. Até que se sentiu pronto para agir.
Conhecia a comunidade com a palma da mão. Sabia onde ficavam os olheiros, os aviãozinhos. Sabia que eles não eram lucrativos em caso de bote. Sabia que havia as sardinhas e os tubarões e, era de um tubarão que ele precisava. Mas Feitosa sabia, também, que tinha de pensar em tudo sozinho. Não podia deixar que nenhum outro colega soubesse de seus planos, pois poderiam dar o bote no malandro antes dele. Feitosa estava sozinho. Ele sabia muito bem que não podia confiar na polícia.





Certo dia deu um bote em um certo Bolívar, que pensava não ter inimigos entre os “vermes,” maneira um tanto quanto desrespeitosa, mas de certa forma amigável, de chamar os policiais em geral, e que andava despreocupadamente nas proximidades do DPO.
Bolívar ofereceu-lhe seus cordões e pulseiras de ouro, Feitosa aceitou sem se fazer de rogado mas não liberou o malfeitor como seria de se esperar. Considerou aquilo como um mero presente. Afinal, se Bolívar não os desse, ele tomaria.
Mandou que Bolívar telefonasse para seus comparsas e pedisse quinze mil reais, que seria o preço de sua liberdade. O traficante protestou mas não houve negociação alguma, Feitosa não aceitaria em hipótese alguma menos de quinze mil reais. Chegou a ameaçar que mataria o traficante e, pareceu que o faria de fato, assustou até o outro soldado que estava ao volante da viatura.
A negociação foi longa. Pois os traficantes não estavam dispostos a pagar quinze mil por Bolívar. Ele ainda não era um grande e não valia tanto dinheiro. Os traficantes barganharam, pechincharam e chegaram a conclusão que pagariam até cinco mil reais para que Feitosa libertasse Bolívar. Feitosa bateu o pé e não reduziu seu preço.
Toda esta negociação ocorreu desde ás dez ou dez e meia da manhã até por volta das quatro horas da tarde. Toda esta negociata estafou os traficantes que já não mais agüentavam ouvir a voz de Feitosa. Um deles teve a idéia de telefonar para o disque denuncia e partilhou sua idéia com outros. Ligaram para o disque denúncia e contaram toda a história.
Em pouco tempo, Feitosa ficou sabendo via rádio, que cerca de quinze policiais da polícia civil se dirigiram para a Rocinha para averiguar a denuncia de que dois policiais que trabalhavam nesta comunidade, seqüestraram um traficante de “relativa” importância para o tráfico de entorpecentes local.
Desesperadamente Feitosa e seu companheiro discutiram se deviam matar o homem em seu poder ou se deviam liberá-lo. Deliberaram que seria menos comprometedor se liberassem o meliante. Assim o fizeram.
Ambos ficaram tristes é verdade, mas, Feitosa ficou inconsolável. “Nem cinco nem quinze”, pensava ele lamentando-se por não ter aceitado os cinco mil reais que lhe foi oferecido.
O restante das horas que faltavam para terminar o plantão foram agitadas. Muitas explicações pedidas, muitas desculpas esfarrapadas inventadas, a certeza da impunidade. Mas o tráfico não perdoa e no dia seguinte em várias paredes por toda a comunidade havia avisos de que os soldado Feitosa e Souza seriam executados assim que entrassem na comunidade. Os avisos foram escritos com spray cor vermelha, talvez os traficantes nem mesmo tenham pensado nisso, mas esta cor infundiu maior temor nas pessoas que liam o aviso. Todos previam uma guerra.
Bolívar e alguns outros líderes do tráfico redigiram uma longa carta que foi xerocada e enviada aos dois departamentos de polícia além de serem coladas em quase cinqüenta postes da comunidade. A carta continha entre outros pontos um que dizia que toda  as conversas dos traficantes com os policiais haviam sido gravadas e copias da fita estavam prontas para serem mandados para as polícias civil, federal e para a imprensa. A carta dizia, também que não seria dado mais nenhum dinheiro a policiais.
Todos os policiais dos dois departamentos estavam com muita raiva de seus dois colegas responsáveis por uma possível perda de renda. Muitos chegaram a dizer que se o tráfico não os matasse, eles próprios matariam. Lamentavam-se pensando no dinheiro que deixariam de ganhar. Era um dinheiro mole que eles estavam vendo escorrer por entre os dedos.
Nenhum dos dois policiais voltaram a pôr os pés na Rocinha novamente. Ambos foram transferidos para o interior do estado, Feitosa, por exemplo, foi  transferido para Cachoeiras de Macacu, cidadezinha aconchegante e pacata com um ritmo de trabalho e vida totalmente diferente a tudo que ele estava acostumado. Alugou uma casa a cinco minutos de caminhada da delegacia e acostumou-se em poucos meses a ir na casa dos pais apenas de quinze em quinze dias ou até uma vez por mês.
O que doía mais era ter perdido Eulália, a mais linda mulher que Feitosa namorou em toda a sua vida. Ficou sabendo em uma das visitas que fez à casa dos seus pais, que Eulália estava namorando com um estudante de medicina dono de um sedã de luxo. “Ela merece muito mais”, pensou ele sem nenhum pingo de rancor, apenas tristeza. Ficou sabendo também ao telefonar para um dos policiais, que  ainda continuou seu amigo, que tudo na Rocinha continuou como antes, apenas não mais tinham direito a bote, os policiais do DPO da entrada da comunidade. Era muito mais lucrativo para todos os envolvidos que não houvesse uma guerra e que tudo continuasse com a mesma tranquilidade de antes.
Nunca mais Feitosa se envolveu  em um esquema de corrupção que precisasse de mais elaboração que um almoço. Não que o incidente tivesse o poder de realizar uma grande mudança em sua personalidade. Ele não tornou-se mais honesto, apenas um pouco menos ganancioso. Se algum colega insistisse ele virava as costas e o deixava sozinho, dizendo baixinho o que achava ser um ditado popular: “falta do que fazer é um problema sério”.










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