O Sonho

O Sonho

Acordou assustado com o rosto molhado  de suor. Com o esforço que fez para acordar, levantou com tanta força e velocidade que jogou longe o lençol que o cobria e fez a cama lançar um lamento esganiçado. Tomou fôlego, parecia muito cansado, deu uma olhada a sua volta e viu que estava em seu quarto. Só podia ser o seu quarto pois tinham os mesmos móveis, os mesmos quadros na parede e até da mesma cor era a tinta que revestia o reboco. Então, por quê por mais que tudo seja familiar, é também diametralmente estranho não só para seus olhos, mas também seus outros sentidos? Não sabe.
Um grito estridente rompe o torpor em que estava envolto e chega até seus tímpanos trazendo-o de volta à realidade. Era o bebê. O bebê chorava praticamente vinte e quatro horas por dia, raro era não ouvir seu choro. Esperava ouvir o próximo grito, o da mãe mandando-o levantar-se e ir comprar pão. Respondeu mecanicamente, pegou o dinheiro abriu a porta e deparou-se com o mato, que estava quase da altura da casa. Não dava para passar.
Em seu esforço para transpor a muralha de capim elefante, chegou a padaria todo cortado pelas laminas do capim. E voltou pelo caminho mais longo pensando em como conseguiria entrar em casa. Pensou também que teria de foiçar o mato e capinar todo o terreno. Entretanto uma lembrança que esvanecia-se  rapidamente lhe dizia que no dia anterior ele já tinha limpado todo o terreno, mas não havia como ter certeza de que a lembrança de fato aconteceu ou era apenas um sonho. Como uma bruma ela em pouco tempo não mais existia. Pensou nisto por alguns instantes e no momento em que chegaria à conclusão que de fato capinou todo o terreno, a lembrança sumiu por completo e simplesmente esqueceu-se deste pequeno detalhe.
O caminho mais longo da padaria até a sua casa era, curiosamente, o único caminho que existia. Mesmo que pelo caminho as casas, as árvores  e os postes pareçam ser diferentes, são sempre os mesmo, sempre iguais. Era comum que ele achasse que o novo dia seria cheio de novidades, que faria coisas diferentes e que encontraria o real significado da vida. Mas, a cada passo dado era mais certo, se não para ele para o universo, que tudo o que faria era viver sua vidinha mediocre.
Ao chegar em casa a mãe não esperou nem que ele entrasse em casa começou a gritar:
- Marco capina este mato! O mato está entrando dentro de casa Marco.
O mato estava entrando  na varanda. Entrava também sorrateiramente pelas janelas e basculantes como um visitante indesejável, daqueles que entram sem pedir licença, joga-se no sofá de forma brusca, colocam os pés sobre o sofá e atacam a geladeira sem receber nenhuma permissão para isso. O mato entrava por todos os buracos que haviam na casa, até mesmo pelo da fechadura. Em certa ocasião, teve de abraçar-se com toda sua força ao abajur da sala para evitar que este fosse levado pelo mato, que vez por outra carregava para si algo de que gostava na decoração.
Ao entrar em casa, nem bem traspassou a porta foi assaltado pelo choro do bebê. Tomou café dividindo a atenção dispensada aos pães, bolos, sucos e frutas de sua farta mesa com os gritos histéricos da mãe e o choro estridente do bebê. Nunca vira uma mesa tão cheia de comida. Tentou ler o jornal que comprara, mas não conseguiu. As letras dançavam frente aos seus olhos. De qualquer maneira, parecia adivinhar as notícias. Não eram nada boas. Nunca eram boas. Cansou de forçar a vista na tentativa de fazer as letras pararem de dançar e pareceu que no mesmo instante seus ouvidos ficaram mais aguçados, ouvindo com maior nitidez tanto o choro como os gritos:
- Marco! Marco! Como é que é? Não vais cortar o mato?
Levantou-se e foi. Cada golpe que desferia no matagal com a foice, uma lágrima escoria por sua face sofrendo o efeito da lei da gravidade e chocando-se com o chão. Depois de alguns golpes Marco chorava copiosamente de maneira que nem cinco dedicadas mães corujas seriam capazes de consolá-lo. Não sabia o motivo de seu choro. Chorava, eis tudo. Chorar não deveria ser algo que fazemos sem ter um motivo, por isso, ele associou o choro ao mato e começou a pensar “Maldito mato! Maldito mato!”. À medida em que trabalhava golpeando o mato cada vez com mais fúria, não mais pensava, mas gritava a plenos pulmões  “ Malditos! Malditos!”. Findas algumas horas havia terminado o trabalho. O quintal estava totalmente livre do mato. Caminhou em direção da porta da sala e ao traspassa-la viu o bebê e sua mãe rindo folgadamente, como se tivessem ouvido uma piada muito engraçada. Não perceberam sua chegada e continuaram a rir por mais alguns instantes. Marco tentou articular algumas palavras, tentou gritar mas não conseguiu. Ficou totalmente paralisado, apenas via e ouvia esta cena que tornava-se patética de tão longa. Ele ficava sempre em silêncio frente a todas as arbitrariedades que praticavam contra ele, e tudo ali era arbitrário demais.
O bebê, depois de certo tempo, olhou para Marco e continuou a sorrir, não o sorriso belo e inocente de uma criança de poucos meses, mas sim um sorriso sarcástico e maquiavélico que lhe fez o sangue gelar nas veias. Era totalmente insana a expressão facial do bebê. Os risos da mãe e da criança pararam e ambos ficaram olhando imóveis para ele sem dizer nenhuma palavra. A mãe olhava para Marco com um olhar que não transmitia nem afeto nem desafeto, já o bebê o encarava com ódio numa expressão facial mais de adulto mau e perverso que de inocente criança. Era certamente o olhar de quem o culpava por ter-lhe infligido uma grande tristeza. O bebê começou então a chorar e se debater, o mato começou a crescer à medida que a criança chorava e, em um minuto, já estava tão grande quanto pela manhã.
  Nunca pensara até então que poderia estar vivendo num pesadelo, mas, sentiu uma angústia tão grande que começou a gritar, mesmo que não saísse som algum de sua garganta, e a sacudir sua cabeça como se estivesse no auge de um surto psicótico. Definitivamente enlouqueceria se não acordasse. Acordou.
Acordou assustado com o rosto molhado de suor. Com o esforço que fez para acordar levantou com tanta força e velocidade que jogou longe o lençol que o cobria e fez a cama lançar um lamento esganiçado. Tomou fôlego, parecia muito cansado, deu uma olhadela a sua volta e viu que estava em seu quarto. Só podia ser o seu quarto pois tinha os mesmos móveis, os mesmos quadros na parede e até da mesma cor era a tinta que revestia o reboco, só podia ser o seu quarto. Mas, como explicar então que por mais que tudo lhe fosse familiar era também diametralmente estranho não só para seus olhos, mas também para seus outros sentidos? Não sabe.

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