Como se Prepara um Marinheiro

Como se Prepara um Marinheiro



João Antônio era marinheiro da marinha mercante brasileira. Por isso, viajava Brasil à fora e América Latina à fora também. Geralmente não demorava nos portos em que aportava, mas em algumas cidades ficava muitos dias, em outras ficava mesmo meses. Seus amores eram como se fossem uma extensão natural do seu trabalho, havia vezes que amava alguns dias um amor tão avassalador e profundo que só era esquecido com a chegada, numa outra cidade, de um outro amor avassalador e profundo que duraria por sua vez, até o recebimento de nova designação no trabalho.
João Antônio já estava acostumado com a fugacidade de seus amores. Fora amado e amara uma mulher chamada Rose em Salvador, outra que chamava-se Cláudia em Porto Alegre, Conceição no recife, Amélia em Santos, Núbia em Natal, Carolina no Rio de Janeiro, et cetera, que pensara saber todos os meios possíveis e impossíveis de se abandonar uma mulher, sem com isso sofrer emocionalmente. Pensava ser um mestre na arte de terminar um relacionamento amoroso sem nenhum revés emocional.
Anotou certa vez em sua agenda uma frase: “como se prepara um marinheiro”, achava que deveria existir um livro com este título que ensinasse homens a porem fim em relacionamentos mal sucedidos ou não.
Estava tão seguro de si, que não esperava encontrar dificuldades para terminar com Dorinha, mulher que conheceu em Sepetiba e que amou mais do que amara até então  qualquer outra mulher. Seu amor por Dorinha estava durando mais do que o tempo previsto para a estada naquela cidade. Dentro de uma semana teria de fazer as malas e embarcar num navio rumo aos braços de outra cidade, e por extensão, de outra mulher.
Mas a danada da Dorinha não facilitou as coisas para nosso amigo João Antônio. Era uma guria de cabelos longos e encaracolados e sua pele tinha cor de jambo, seu sorriso melífero atraia outros sorrisos a si como, na primavera, as flores atraem as abelhas vindas de todos os cantos atraídas pela promessa do néctar. Seu todo era formado pelas mais divinas partes, tornando-a a mais perfeita realização da natureza, suas pernas e braços, bustos e quadris pareciam terem sido arrancadas à força das mais lindas mulheres apenas para comporem aquela Vênus suburbana. Entretanto, não possuía  apenas  dotes estéticos, era uma ótima cozinheira, sempre preparava os mais exóticos e gostosos pratos para o deleite de João Antônio, que se não estivesse preso pelo jeito meigo de sorrir e pelas belas formas da morena, certamente havia de ficar preso a ela, Dorinha, “pelo estômago” como nos diz esta frase clichê que, neste caso, corresponde a mais justa medida.
Dorinha além de muito boa cozinheira era também dona-de-casa exemplar. Sempre mantinha a casa limpa e as panelas brilhando. Pode parecer fácil, mas manter as panelas brilhando não era tarefa facilmente realizável por qualquer pessoa. Sua mãe tinha uma pensão acolhedora e que por isso atraia muitas pessoas. A comida da mãe de Dorinha era ainda melhor que a dela, e era tanta que apenas panelas enormes podiam dar conta de tanta comida, de tanta procura. E acabava ficando com Dorinha a maior parte do trabalho.
Dorinha era desejada por todos os homens de seu bairro e adjacências, quando à sete meses João Antônio aportou em Sepetiba tornou-se o mais invejado de todos os homens, por ter conquistado a mulher mais linda e difícil da região. Diziam que ela era bastante geniosa, orgulhosa e cabeça dura e que era por isso que não namorava com niguém.
Sempre que retornava das viagens, João Antônio, mostrava para seus amigos as fotos que tirara ao lado da mais belas mulheres e tornava-se ainda mais popular. Não era isso o que queria. Ser popular era algo que acontecia quase naturalmente, por ser bonito e por ser uma pessoa que tinha a estranha capacidade de ser transparente e natural, evocando nas pessoas ao seu redor estas mesmas qualidades, atraía a si outras pessoas. Era como se João Antônio tivesse em mãos uma longa corda e uma caçamba e a usasse para descer esta caçamba ao mais profundo âmago dos sentimentos humanos e puxar para fora as melhores qualidades de cada pessoa. Eis a verdade: João Antônio sabia fazer as pessoas ao seu redor sentirem-se bem.
Desde que sua mãe falecera sentira-se abandonado. Um abandono real que, entretanto, não queria se reconhecer como abandono e era sempre afogado nos braços dos amores fugazes que lhe caíam no colo em cada bar que parava para matar a sede, em cada restaurante que parava para matar a fome ou em cada ponto de ônibus onde estacionava na espera de um ônibus que, às vezes, demorava para passar.
João Antônio procurava nas mulheres o que tivera apenas na imagem de sua mãe. Não preocupava-se com beleza física, era a beleza que se aproximava dele e como era cômodo esta situação, deixava ela continuar pois sabia que ela não iria durar. A beleza é ainda mais fugaz que o amor. Em verdade, João Antônio procurava uma mãe. Uma mãe que estava morta e enterrada havia muito tempo. Nunca tivera um relacionamento com uma mulher que fosse uma boa dona-de-casa e cozinheira até o momento que conhecera Dorinha, todas as outras eram lindas, mas não possuíam qualidades desejáveis em uma mãe.
João Antônio olhava fixamente para o calendário, constituindo-o em objeto de culto. Reparava que o tempo é um amo inflexível que nos expulsa de seus territórios de forma brusca e com mãos de ferro nos impõe seu domínio hora após hora no decorrer dos anos. Faltava então uma semana para o dia marcado para zarpar de Sepetiba. Seu coração estava dorido por pensar que em poucos dias abandonaria a mulher que potencialmente seria o maior de seus amores, o portal para o paraíso.
Sentado à mesa na modesta cozinha da casa de Dorinha, João Antônio saboreava com prazer inaudito um prato composto de arroz, feijão, arraia ensopada e um pirão feito com o caldo do peixe. Ele comia e olhava, vez por outra, de soslaio, para Dorinha, que impaciente perguntou-lhe:
-Fala o que você tem João, quando você fica me olhando assim de rabo-de-olho, alguma coisa tem!
-Nada, eu to maravilhado com sua comida, esta maravilhosa!
-Você não me engana homem, desembucha logo!
“Até nisso ela é parecida com minha mãe”. – Pensou ele – “com este seu jeito de olhar, parece ler meus pensamentos”.
João Antônio sorriu, um sorriso vencido, envergonhado de sua fraqueza, baixou a cabeça desviando seus olhos dos olhos perscrutadores de Dorinha, que cruzava os braços, como se em tal posição seus ouvidos funcionassem melhor, era simplesmente impossível esconder seu segredo por mais tempo ou mentir.
-Vou viajar Dorinha, vou novamente para Natal.
-E você está estranho assim por causa disso? Você só vive em viagens homem, não precisava temer me contar nada.
Um silêncio desagradável caiu naquela cozinha que não tinha azulejos nas paredes sobre o reboco. João ainda desviando seus olhos dos de Dorinha, denunciou que devia haver mais coisas a dizer. Dorinha, deixando de levar a comida á boca, mas mastigando levemente o garfo, esperava ouvir mais algumas palavras que elucidassem mistério do silêncio que atrapalhava seu jantar e tornava a comida preparada com todo carinho uma mistura intragável. Esperou em vão.
-Tu vais demorar em Natal? – Perguntou Dorinha com uma angústia que crescia na garganta, uma secura, um nó que era o sintoma físico de uma angústia emocional por temer a resposta de sua pergunta.
-Vou demorar alguns meses, lá tem muito trabalho.
Passado uns três minutos disse Dorinha quebrando um novo silêncio  que intrometera-se na conversa:
-Eu não poderia ir com você?
Passando a mão direita nos cabelos, João Antônio relutava em dizer que, provavelmente, não veriam-se nunca mais após sua partida. Não precisava dizer nada, Dorinha sabe, apenas sabe que é isso o que João intenciona.
-Vou embora na próxima segunda-feira, não tem como você ir... pelo menos não agora.  Quem sabe depois de um tempo...
O jantar havia terminado mal para Dorinha, pois sabia com um saber profundo que mal também terminara seu próprio relacionamento. Nunca amara tanto a um homem e nunca antes havia confiado em levar para sua casa uma pessoa do sexo oposto. Sabia o quanto a língua dos vizinhos pode arruinar a reputação de mulheres solteiras que não tomam cuidado com isso. Não queria que a pequena pensão de sua mãe fosse comparada com um estabelecimento vulgar. Os dias até a viagem de João Antônio passaram-se chochos, arrastados, sem muita conversa entre os dois. Dorinha já não sorria nunca e quando se via sozinha em casa  chorava copiosamente. João Antônio por sua vez, também estava triste. Só em pensar que iria ficar distante, muito distante de Dorinha, já sentia saudades. O coração apertava e algumas poucas lágrimas involuntárias surgiam nos cantos dos olhos. Onde encontraria outra mãe? Já perdera uma mãe, perderia também outra? Sentia-se fisgado de tal forma que decidiria não mais ir a Natal. Pedira demissão, comprara uma aliança e no dia marcado para viagem, pediria Dorinha em casamento. Sabia que isso era uma loucura, mas, o amor em si é uma loucura, um tipo de sentimento que nos faz perder os sentidos e agir, muitas vezes, como loucos. No dia da viagem na hora da despedida pediria Dorinha em casamento. Seria romântico, como nos filmes.
João Antônio e Dorinha conversaram pouco nos dias seguintes à noite da  revelação de que João iria partir. Nem mesmo olhavam-se nos olhos quando se dirigiam um ao outro. João Antônio sentia uma vontade infinita e crescente de terminar sua farsa e dizer a Dorinha que não iria jamais afastar-se de seus olhos, de sua pele cheirosa e macia, de seus abraços apertados e seus beijos de mel. Igual ao infinito universo em expansão no qual existimos como entes, esta vontade crescia e avançava para o nada e, quase fez com que João Antônio contasse a verdade para Dorinha, quando ela perguntou-lhe, no dia anterior ao marcado para viagem, se não havia mesmo como adiar sua partida.
         -Não, não há como adiar a viagem. Você sabe que preciso deste emprego... se eu não for posso ser dispensado. – Disse João Antônio, antes de explicar que o seu era um bom emprego e que se saísse dele, poderia ser muito difícil arrumar um outro emprego. - Tentei falar com meu chefe, mas ele nem deu ouvidos à minha proposta. – Verdade. – Falou que todo dia havia uma fila de pessoas pedindo uma vaga. – Mentiu, mas tão mal que não convenceria nem mesmo uma criança. – Há um verdadeiro exército de reserva, o que faz com que até empregos ruins sejam encarados como um tipo de artigo de luxo.
      -Tá bom, isso tudo eu sei, mas ainda  não entendo o motivo de não continuarmos nosso relacionamento mesmo com a viagem. – Disse Dorinha em algum ponto não determinado entre confusão de espírito e queixa.
      A vontade, a mesma vontade de dizer a verdade logo de uma vez, sem titubear, e que crescia mesmo que paradoxalmente já fosse infinita, veio à boca de João e foi contida apenas por ele ter cerrado com força os dentes num ato de puro reflexo. Mas, impertinentemente, a verdade ficou em sua boca trancada e João Antônio não conseguiu pronunciar nenhuma palavra. Porém, não suportaria continuar por muito tempo como alvo dos olhares esquadrinhadores de Dorinha. Tinha de falar alguma coisa, pois era isso o que ela esperava naquele momento, e João, como todo homem, apenas faz o que as mulheres esperam que eles façam, mesmo que às vezes não sejam compreendidos. Então, falou:
         -Eu não acredito em relacionamentos à distância. Amor à distância é tão real quanto Paris é real para mim ou para você que nunca fomos e, talvez, nunca iremos até lá.
          Estas palavras foram pronunciadas por João Antônio com uma voz que não era a sua, é bem provável que foi por este motivo que elas saíram de forma brusca e rude, ácidas e ignorantes. João falou assim, por entre os dentes, para não permitir a fuga da vontade de dizer a verdade que ainda estava em sua boca, que ele juntou com grande quantidade de saliva e engoliu de uma única vez transpondo a soleira da porta, ao sair para rua em busca de um abrigo algures, que o protegesse dos olhares de Dorinha que comunicavam com mais vigor que qualquer palavra o grau de seu desapontamento e agravo.
        Eram já altas horas quando João Antônio retornou. Dorinha dormia trancada no quarto. João dormiu na sala e, mesmo desconfortável no pequeno sofá, sonhou sonhos bons. Acordou com uma estranha certeza de que a vida seria muito melhor para os dois e para o mundo. Se a felicidade está na forma como vemos o mundo, não seria difícil alcança-la, pois seus olhos viam tudo com mais cor e clareza.
          Era um perfeito dia de primavera. Dorinha não estava nem triste nem alegre. Pediu para João Antônio ir até o sacolão comprar legumes e verduras, os quais precisava com urgência. Disse num tom de voz seco que se ele não quisesse ir, ela mesma iria sem problemas. João Antônio foi e não demorou na rua como, às vezes, costumava fazer. Ao voltar as gigantescas panelas já esperavam limpas. Haveria muita comida, cozida da forma especial como só Dorinha sabia fazer. João ainda ajudou a picar cebolas, tomates, pimentões, salsa, cebolinha, coentro, descascar batatas mas, não havia carne para tanto tempero. Perguntou se havia necessidade de ir até o açougue. “Carece não homem. Por que está tão prestativo se você já vai embora?” Foi a resposta com o mesmo jeito seco e indiferente que ela sabia tão bem ostentar.
            -Vai me ajudar com o cosido?
            -Vou.
           -Então bebe esta vitamina e come este pão, que eu preciso de um homem forte para me ajudar com as panelas, já que vai ser a última vez.
            Enquanto comia e bebia, João pensava: “Vou ajuda-la até tarde; fingir que esqueci o horário da viagem e quando ela perguntar se não vou, vou até o quarto e falo que  buscarei as malas. Volto com a aliança e peço-a em casamento.” Ao acabar de comer João sentiu-se tonto e desmaiou. Dorinha pegou uma faca amolada e cortou a barriga de João, colocando seus órgãos internos numa panela, gordura em outra e, ainda em outra panela coletou um tanto de sangue. Cortou um tanto de carne que dava para fazer um cozido para muitas pessoas, misturou com outros ingredientes do cozido, vinagre, pimenta do reino, alho e sal. Temperou e levou para o fogão, cozinhando em fogo brando.

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