Feliciano Eustáquio de Souza

Feliciano Eustáquio de Souza



Se alguém perguntasse a meu querido avozinho qual era o seu nome, ele não se contentava em responder apenas Feliciano ou senhor Feliciano. Sempre respondia seu nome completo: Feliciano Eustáquio de Souza. O nome era como se fosse um troféu para ele. Sempre dizia que era pobre sim, mas, tinha o nome limpo, limpo como o céu dos dias de dezembro e que a única coisa que tinha na vida era o seu bom nome. Eu sempre retrucava de forma irônica que se Feliciano Eustáquio fosse um bom nome, eu tinha um nome de rei. Eu não zombava do vovô por não gostar dele, muito pelo contrário, eu implicava com ele com ciúme do meu irmão mais velho que era o queridinho do vovô  e recebia dele muito mais de seu carinho e atenção que eu.
Meu avô foi roupeiro do Botafogo por muito mais de vinte anos e não havia nada no mundo que ele gostasse mais que futebol. Ele falava demoradamente de nomes como Ademir da guia, Dada Maravilha, Rivelino, Pelé e por ai seguia numa longa lista de nomes que nunca fizeram nenhum sentido para min.
Eu ficava rindo, por isso ele tornava dura a expressão do seu rosto e me chamava de debochado, mas bem que eu gostava de ouvi-lo. Meu irmão sempre ganhou mais presentes do vovô do que eu e minha irmã. Toda vez que ia lá em casa vovô levava alguma coisa para o meu irmão, que depois ficava zombando de mim. Houve até discussões entre mamãe e vovô por este motivo. Mamãe dizia que se um fosse receber presente os outros tinham de receber alguma coisa também, pois se eram três crianças, deveriam ser três presentes, ou então, se não houvesse condição financeira, e nunca havia, para comprar um presente para cada criança, pelo menos a cada visita deveria ser um presente para cada uma das crianças. Isto seria justo. Mas vovô nem queria saber, sempre trazia presente apenas para o meu irmão.
  Meu irmão, oportunista como ninguém mais, ficava puxando assunto com vovô fazendo-lhe perguntas sobre futebol. Se eu fechar os olhos posso vê-lo com tanta nitidez, que chego a esquecer que ele faleceu a mais de cinco anos. Camisa xadrez, calça social clara, formando um tipo de uniforme padrão que associado a um jeito de andar com os ombros meio curvados como a indicar que carregara as dificuldades da vida neles por muito, muito tempo. Meu avô era um aposentado comum, destes que abundam no bairro do Engenho de Dentro.
Meu avô tinha os cabelos bem branquinhos, a boca pequena perdida num rosto largo e os olhos eram glaucos, escondidos atrás dos óculos de modelo antigo, e usava chapéu, em suma, era um típico avô não devendo nada a nenhum outro avô.
Certa vez vovô contava com empolgação para meu irmão que Zico era chamado de galinho de Quintino não apenas por ser franzino e ter o nariz adunco, mas porque ele na frente de Garrincha era um jogador muito inferior, “É pinto! É pinto!” dizia o vovô. Dizia que de pinto para galinho era “coisa poca”. Meu irmão ouvia tudo isso e fingia interesse, sempre pensando no presente que ganharia na próxima visita e como eu não tinha nada a perder, ficava rindo tanto que chegava a chorar de rir.
Eu gostava de ouvir rock’n’roll, mas quando o vovô chagava lá em casa, tinha de desligar o rádio ou o velho toca-discos, pois vovô ficava repetindo de forma incansável enquanto eu não desligasse o aparelho de som: “Rock é coisa do diabo!” e eu dizia só para perturbá-lo ainda mais:
- Velho, ele põe o dedo em tudo que há no mundo, veja só as guerras. É só ligar a televisão.
Ele não acreditava, e, eu sabia que ele tinha muitas superstições, então, lhe dizia que ter superstições evidenciava influência maligna na vida da pessoa. Ele ficava com ódio de mim, falava de mim para meu pai e para minha mãe e ficava com cara feia para meu lado por muito tempo. Era hilariante.
Uma outra vez quando estava pensando em abandonar o curso técnico que fazia paralelamente ao segundo grau, vovô me chamou e disse que queria me contar uma história.
- Neto, disse ele, vou lhe contar uma história que meu pai me contou quando eu tinha mais ou menos a sua idade, mesmo que ele tenha contado em outro contexto e com outra finalidade, creio que você vá entender a moral da história.
Vovô deu uma longa pausa, ajeitou os óculos, respirou fundo e por um instante percebi que ele gostava muito de min e que se ele não demonstrava este sentimento mais vezes, a culpa era toda minha e das minhas brincadeiras de mau gosto.
- Numa rua comum como esta, arborizada e movimentada durante o dia, mas deserta á noite, passava todos os dias uma menina muito bonita, que despertava olhares dos mais singelos aos mais biltres. Ela estudava e trabalhava consumindo assim todo seu dia. Passava toda manhã vinda de sua casa com passos rápidos e cabeça baixa, sem nem mesmo reparar nas pessoas que passavam por ela ou que ficavam das janelas, dos portões, dos bares, atirando olhares curiosos e/ou maliciosos. Toda noite ela retornava para sua casa cansada, muito cansada, de cabeça baixa mas com passos lépidos apesar do cansaço.
A rua desta história podia facilmente ser esta, dr. Leal. Você sabe que há horas, quando escurece, que ela fica deserta e, em certos pontos, as árvores escondem por trás de suas folhas a luz dos postes, fazendo com que certos pontos sejam de escuridão quase abissal, atenuada apenas pelos faróis dos carros que, às vezes, demoram a passar.
A moça sabia que havia muitos olhares que eram bons, e o que era pior sabia que havia alguns que traduziam desejos e pensamentos mais sórdidos e que poderiam estar ali  no escuro, escondendo-se atrás de uma árvore esperando sua passagem.
Pena não haver um namorado, irmão ou pai para lhe fazer companhia nestes retornos. Não estava sozinha, havia Deus, então, rezava! – Dizia vovô sem conseguir perceber em meu rosto sinais de cansaço com aquela narrativa longa que até este momento não me interessava, mesmo que eu não demonstrasse isso.
- Seus receios eram válidos pois a escuridão realmente ocultava um homem que nutria pensamentos maus para com a pobre moça. Todos os dias ele a esperava passar pela rua e ficava a observá-la escondido. Se as pessoas pudessem ser julgadas pelos pensamentos que nutrem, este homem simplesmente não teria coragem de falar nada do que pensava.
Certa noite a moça retornava para sua casa, como nos outros dias, quando o estuprador gentil deixou que ela passasse então saiu de seu esconderijo e caminhou rápido atrás da moça e a ultrapassou. Ao passar por ela, ele disse discretamente:
- Boa noite.
Não houve resposta alguma da parte da menina. Na noite seguinte, aconteceu o mesmo. O homem ao passar apressado pela moça disse-lhe:
- Boa noite.
Não houve resposta da parte da menina que, novamente, estava tão assustada e desconfiada que abaixou ainda mais a cabeça. No terceiro dia ao cumprimentar a moça com o mesmo “boa noite” de sempre, seu coração quase parou quando a menina, sem saber das verdadeiras intenções do homem, respondeu de modo tímido mas audível:
-Boa noite.
Esse acontecimento fantástico, na óptica do homem, aconteceu numa quarta-feira. Na quinta e na sexta, a moça cumprimentou o homem como se ele já havia muito tempo fizesse parte de seu cotidiano. Na segunda-feira da semana seguinte, ao ver o homem se aproximar a menina sentiu-se aliviada por ter alguém para lhe fazer companhia e antes que o homem se afastasse, ela perguntou-lhe:
- Moço, desculpe o incômodo, mas o senhor vai para tal lugar?
- Sim, vou para tal lugar.
A moça conversou bastante não apenas nesta noite, mas também nas noites seguintes onde esta mesma cena se repetiu por muito tempo.
O homem não era velho e, igualmente, não era feio. Conversava bem e, decididamente, era gentil. Não demorou e eles estavam, namorando. Com o tempo, noivaram e depois casaram. São hoje felizes depois de 10 anos de casamento e criam um casal de filhos muito bonitos.
Neste ponto desta narrativa tosca, eu não consegui mais agüentar e comecei a rir de maneira descontrolada. Aproveitei para chateá-lo ainda mais e comecei a rolar no chão fazendo gestos espalhafatosos. Vovô ficou, num primeiro momento, ruborizado, depois o vermelho de seu rosto era apenas de raiva. Começou a chamar-me de peralvilho e se eu não me afastasse dele, certamente me arrancaria fora uma das orelhas. Eu de fato, não era um bom neto. Nunca soube qual era a moral da história.
Coitado do vovô!

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