O Dia da Caça

(J. C. Peu)


Odiava ir à escola. Fora as brincadeiras, a merenda e o doce de leite pastoso ‘Xamego Bom’, servido como sobremesa numa colher de sopa bem cheia, nada mais me interessava. Eu subia numa mangueira, que tinha os galhos estrategicamente posicionados pela natureza para facilitar a fuga de alunos insatisfeitos, e sempre inventava uma desculpa para chegar mais cedo em casa.
            As brigas e a bagunça da turma do ‘fundão’ também me interessavam. Ver uma garota, Luciana era o seu nome, chorando após toda a galera da bagunça decretar que o seu apelido seria ‘Xaropinho do Capeta’, inspirado no programa infantil do Sérgio Malandro, ‘A Hora do Capeta’, foi, para mim, uma alegria. Na abertura do programa, tinha um capetinha fazendo traquinagens. Dizíamos que ela se parecia com ele. Isso é uma das lembranças mais impactantes da minha infância.
            Outro dia, enquanto caminhava no bairro num sábado pela manhã para ir até a Rua da Feira comprar um ou dois quilos de pescadinha, vi de longe a Luciana andando de mãos dadas com seu filho e seu marido. A Rua da Feira é uma rua com algum comércio. Uma padaria, açougue, peixaria, lan house, mas nenhuma feira. Nem sequer uma barraquinha vendendo laranja e banana. O melhor lugar que encontrei para esconder-me e observá-los, foi atrás de uma árvore.
            Quase chorei de emoção ao lembrar do doce pastoso ‘Xamego Bom’, da época do Colégio Estadual São Judas Tadeu, vinte anos atrás. Comprei muitos doces de leite no decorrer dos anos, na tentativa de provar o mesmo sabor do doce da infância, inclusive da mesma marca, a do coraçãozinho vermelho, mas, parece que o sabor imaginado nunca será o mesmo do sabor real. Lembrei-me também das brincadeiras, das bagunças e da ‘Xaropinho do Capeta’.             
            Odiava ir à escola, pois, um dia é da caça e o outro é do caçador, como diz o ditado popular. Quando, numa aula de geografia, o professor cuspiu saliva e giz perguntando o local de nascimento de cada aluno na sala, uma sensação como de choque elétrico percorreu todo o meu corpo e tremi de medo. Até hoje me pergunto por qual motivo falei a verdade naquele momento. Deveria ter dito que nasci por ali mesmo, que era ‘papa-goiaba’.
            Quando respondi, meio sem graça, “São Lourenço da Mata, Pernambuco”, todos riram de mim até sentirem a barriga doer. Acharam que São Lourenço era uma piada. Todos se morderiam de inveja se soubessem que no distante ano de 2014,  alemães, italianos, franceses, ingleses, e mais turistas de mil outros lugares, andariam nas ruas de São Lourenço da Mata em direção ao estádio de futebol para assistir algum jogo da copa do mundo.
            Se tudo terminasse aqui eu não teria tantos traumas. Mas, como pode uma coisa dessa? Até a ‘Xaropinho do Capeta’ riu de mim. E ela ‘lavou a égua!’ Colocou as mãos na barriga imitando o palhaço Bozo, ou o Gato Félix, para aumentar o meu desconforto. Aquele foi o dia da caça. Escondido atrás da amendoeira, fiquei me segurando para não gritar seu apelido. Seria uma grande vingança. Iria envergonhá-la na frente do filho e do marido. Mas, se fizesse isso quem estaria fazendo um papel vergonhoso seria eu. Um homem de trinta e poucos anos agindo como uma criança. Tudo o que sentia era o cheiro do peixe e a língua coçando. Que vergonha! Todos riram de mim, até a ‘Xaropinho do Capeta’!

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