No Trem Para Japeri

(J. C. Peu)    

                                                   
            Erick havia abandonado o segundo ano do segundo grau desde a metade do ano. Por volta do dia 10 de dezembro de 1998 eu já tinha todas as notas, todos os resultados que diziam que eu, finalmente consegui concluir o segundo grau. Era assim que se chamava o Ensino Médio na época. O Bira ainda estava no período de provas. Ele estava cursando o segundo ou o terceiro ano, não lembro direito.
            Cada um de nós estudava num colégio diferente, mas, por via das dúvidas, preferimos não explicar isso muito bem ao nosso empregador. Éramos peões de obra na reforma da Servicenter, loja de peças e eletros domésticos de cozinha que funcionava na rua Voluntários da Pátria, em Botafogo. Esta loja existe até hoje, embora não com o mesmo nome, no mesmo endereço, próximo á Cobal do Humaitá.
            Por causa dos estudos saíamos do trabalho ás h. Uma hora a menos de trabalho. Os outros peões ficavam soltando piadinhas, dizendo que estávamos inventando que estudávamos só para sairmos mais cedo. Era intriga da oposição. Tudo o que queriam era poder sair, também mais cedo.
            Neste dia específico, lembro que era uma quarta-feira, tomamos banho e nos arrumamos rapidamente, com exceção do Erick, ele andava com um monte de óleos e cremes da Natura na mochila, e não tomava banho na maioria dos dias. Não demorou nem cinco minutos para passar o 173 em direção da Central do Brasil. Era a opção mais rápida. O 178 também era uma boa opção, mas o 173 era ainda mais rápido.
            No caminho não encontramos nenhum engarrafamento em Laranjeiras ou no Catumbi. Pensávamos que iríamos chegar cedo em casa, ou na escola no caso do Bira. Mas, na Central tudo estava um caos. Dezenas de seguranças com seus coletes vermelhos e cassetetes caçavam camelôs pelas plataformas. Era uma praça de guerra. Camelôs pulando plataformas, jogando pedras nos guardas, apanhando muito e sendo arrastados para fora da estação.
            Milhares de pessoas se espremiam nos cantos para se afastarem um pouco da confusão. Porém, um número cada vez maior de pessoas chegava a cada minuto. Estava chegando o horário de maior movimento do dia. Não havia trem marcado nem para Japeri, nem para Santa Cruz, nem para Belford Roxo. Naquele tempo o trem para Gramacho ainda saia da estação da Leopoldina. Os lugares aparentemente mais calmos eram próximo ás plataformas de 1 a 4. Muitas pessoas foram para lá para fugir do tumulto. Nós fomos também, mas foi só ilusão.
            Os camelôs, fugindo dos guardas, se misturavam no meio da multidão e escondiam suas mercadorias perto dos passageiros na intenção de que os guardas não as encontrassem, posto que confiscam as mercadorias que não possuem nota fiscal e expulsam, muitas vezes de forma violenta, os camelôs da estação.
            Estávamos angustiados e apreensivos com aquela situação. A Continental, como chamávamos a Servicenter por ela ser uma autorizada da Continental 2001, não nos dava passagem para viajarmos de ônibus. Dependíamos do trem. E, mesmo se nos dessem a passagem de ônibus, economizaríamos dinheiro optando pelo trem de qualquer maneira.
            Não havíamos percebido, mas um camelô havia escondido perto de nós uma caixa de isopor cheia de latas de refrigerante e cerveja. Havia sido anunciado um trem para Santa Cruz que sairia da plataforma 6 linha F. Ficamos atentos posto que poderia ser anunciado um trem para Japeri a qualquer instante. Começamos a nos mover no meio da multidão em direção das plataformas 8 ou 10, já que é mais provável que um trem para Japeri seja anunciado nestas plataformas mais do que em qualquer outra.
            Por algum motivo, parecia que o tumulto referente a caça aos camelôs havia cessado e o tumulto reinante á partir daquele instante seria apenas, como é de praxe, referente a achar um lugar sentado, ou num lugar do vagão onde, mesmo em pé, desse para se acomodar melhor.
            Alguém se esqueceu de avisar para um dos guardas de que não é bonito jogar os camelôs contra os passageiros do trem. Todos sabem que os passageiros têm a tendência de tomarem posição á favor dos camelôs contra os guardas das estações. Um guarda pediu ao Erick que pegasse a caixa de isopor que estava bem próxima dos seus pés e lhe desse. Na correria, não tivemos tempo de prestar atenção a tudo que acontecia ao nosso redor. Se tivéssemos percebido o que ocorria, teríamos alertado ao Erick quanto a não pegar a caixa, ou teríamos o puxado para o meio da multidão.
            Ele parou, pegou a caixa e dirigiu-se em direção do guarda que o chamou para entregá-lo. O guarda segurava em uma das mãos um garoto, talvez uns 15 anos ou menos que isso. A caixa era do garoto. Junto com este guarda havia outros dois carregando um monte de mercadorias apreendidas. Quando isso aconteceu, vários camelôs e alguns passageiros que estavam acompanhando a situação começaram a gritar e xingar o Erick. Ele ficou parado com a caixa de isopor na mão sem saber o que fazer. Os gritos e xingamentos diziam que ele estava tomando posição á favor dos guardas. Ele olhava de um lado para o outro, e por fim decidiu deixar a caixa no chão. Era tarde, o guarda já se dirigia em sua direção e pegou a caixa.
            Os xingamentos aumentaram de intensidade. Eu e o Bira voltamos para o lado do Erick, mas o problema é que havia muitos camelôs, e temíamos que avançassem no Erick para descontar nele a raiva que sentiam contra os guardas. Outros guardas surgiram, e ficamos no centro da confusão. Os camelôs, de fato, queriam bater no Erick, e por extensão acho que sobraria sopapos para mim e para o Bira.
            Os guardas chegaram batendo com violência nos camelôs, que revidavam como podiam, mas não era a mesma coisa. Um técnico de refrigeração que trabalhava na Servicenter dizia sempre um bordão que havia aprendido nos tempos do serviço militar, “contra a força não há resistência”. Foi um massacre, uma pancadaria violentíssima. O pior é que se não tivesse acontecido, talvez quem tivesse sofrido graves agressões seriamos nós.
            Recebemos a proteção e a escolta de 4 guardas. Foram conosco até a estação de São Francisco Xavier. Depois que eles desembarcaram, ficamos com medo de algum camelô querer nos atacar até descermos em Comendador Soares. O velhinho que vende pele, e que tem o bordão “toda hora eu vendo, nhac!” nos olhou como se perguntasse se queríamos comprar um saquinho de pele, mas interpretamos seu olhar como uma promessa de retaliação.
            Um negro, alto, forte, com uns 1,90 de altura e uns 100 quilos, de expressões faciais nordestinas, que passou vendendo picolé com uma caixa de isopor enorme, pareceu por um instante que daria um soco só e derrubaria nós três. Nunca orei tanto quanto naquele dia, e mesmo assim, a viagem nunca pareceu tão longa.
            No dia seguinte, eu e o Bira não fizemos outra coisa se não contar para todo mundo na obra o que aconteceu com o Erick. Omitimos, claro, a nossa participação na história. Não contamos que se batessem no Erick, provavelmente, apanharíamos juntos. Rimos do Erick até o fim do ano.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Teoria do Iceberg, de Ernest Hemingway

Eu Sei Por Que o Pássaro Canta na Gaiola, Maya Angelou

Todos os Gêneros da Ficção Científica - Space Opera