Chinelo

 (J. C. Peu)
            Quando era jovem, sentia um prazer inenarrável quando Ele me pisava com carinho. Quando Ele andava devagar olhando para todos os detalhes á sua volta e não tinha nenhuma preocupação com o relógio. Era como se seu desfile tivesse como o único objetivo que todos contemplassem a minha beleza. Parecia que eu flutuava pela rua, ah! Que gozo! Era como se o mundo fosse perfeito e o céu não precisasse existir, posto que eu já estava no paraíso...
            Mas, estou ficando velho e gasto. Ele me usou algumas vezes para jogar futebol no asfalto duro da rua de sua casa. Cada vez que ele corria com a bola em direção ao gol, dava pisadas vigorosas no asfalto e me machucava muito. Pressentia o pior, sabia que mais cedo ou mais tarde eu não iria agüentar este pique. Purgatório...
            Um dia desses, Ele desceu um morro com a bicicleta velha e sem freio e me pressionou contra o pneu para evitar o pior para ele. Não pensou em mim, me esfolou, me deixou com uma marca irreparável e me matou um pouquinho. Nunca senti tanta dor quanto naquele dia. Todas as topadas que se seguiram não passaram de um simples prólogo do fim que se aproxima. Inferno...
            Hoje estou velho. Logo ele irá me rejeitar por outro mais novo ou por coisa pior, um tênis ou sapato. Minha última vingança foi vê-lo ser quase arrastado para dentro do camburão por um policial que o confundiu com um bandido por estar calçado comigo. Termino minha vida útil feliz.

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