William Wilson


(J. C. Peu)

Wilson sabia tudo a respeito da vida de todas as pessoas do mundo. Sabia que John Miller, dono de uma lanchonete em Amherst, Boston, Massachusetts, havia trocado todo mobiliário de sua loja. Sabia até mesmo quantos dólares Miller já havia quitado de sua hipoteca, e quanto ainda devia pagar para liquidar completamente a dívida. Era inútil Wilson, que mora no Rio de Janeiro, saber sobre isso. Não era da sua conta saber que o número de graduados em instituições de ensino de Portugal, que procuravam emprego aqui no Brasil por conta da grande crise econômica, não parava de aumentar. Sabia até quanto dinheiro tais graduados gastavam com passagens e acomodações.
William Wilson sabia que Rafael Monteiro, advogado brasileiro de 58 anos, pagou todas as despesas do enterro de seu pai, Heleno Monteiro. Wilson sabia que Heleno, de 116 anos, ficou internado na CTI do Hospital Sírio-Libanês em São Paulo por dois meses antes de morrer com falência múltiplas nos órgãos. Wilson sabia que o hospital fez de tudo para conseguir que o corpo de Heleno aceitasse novos órgãos sintéticos apenas para arrancar mais dinheiro de sua família. Sabia que os acionistas ficavam tristes com a perda de paciente tão promissor para os negócios. Wilson sabia de banalidades como a marca de cada esparadrapo, ou de cada siringa que Heleno usou enquanto estava hospitalizado, e sabia até qual foi o último programa de televisão sintonizado na TV do quarto de Heleno.
Wilson sabia tudo a respeito da vida de todas as pessoas do mundo, mas, o que o incomodava era o fato de que todas as pessoas do mundo também sabiam tudo a seu respeito. As pessoas do mundo inteiro sabiam que William Wilson iria morrer em breve. Assim era o mundo. Todos sabiam da vida de todos.
Quando tomava um banho, a companhia de água media a quantidade de água utilizada e a duração do banho poucos segundos após isso. Quase simultaneamente a informação já estava ao alcance de todas as pessoas do mundo na rede. Era fácil, mesmo de um celular simples, acessar todas estas informações. Isso não era bom, na opinião de Wilson, já que justificava a ausência de seus filhos e de seus velhos amigos. Monitoravam sua vida e sua doença á distância, e quase nunca faziam uma visita real.
Wilson nunca se acostumou com isso, e não era agora, no fim da vida, que seria diferente. Entendia a explicação oficial de que isso era necessário, mas não acreditava muito no que os especialistas diziam. Era um homem do século 21, e não do novo século. Todos os governos do ocidente concordaram que a privacidade era algo destrutivo para a sociedade. Logo, não mais havia crimes, ou revoluções, pois não dava para se programar para atos ilícitos sem privacidade. Mesmo com um acontecimento aqui e outro ali, que podia ser creditado a imprevisibilidade do ser humano, podia-se dizer que a humanidade havia chegado, finalmente, à paz.
Wilson, com suas ideias de velho, sabia que esta paz era principalmente mercadológica. Eram as empresas as maiores beneficiadas pelo fim da privacidade. Sentia-se preso às necessidades do mercado. Mesmo antes de sentir falta de qualquer coisa em sua casa, como uma caixa de leite, ou uma simples aspirina composta, o mercado já sabia disso e se preparava para suprir essa necessidade. Havia incontáveis batalhões de operadores de telemarketing oferecendo holograficamente tudo a todos.
O mercado sabia que Wilson recebia R$ 8.770,00 e planejava todo tipo de marketing e propaganda para levar o máximo possível deste montante. Cada empresa preparava anúncios individualizados para cada pessoa, e isso irritava Wilson. “Bom dia! Seu leite está acabando!” – Dizia uma moça sorridente no holograma projetado de sua geladeira. “Confira todos os preços da marca que você prefere, e veja onde comprar com maior economia!” – Para Wilson as propagandas oferecendo remédios eram ainda piores. Aumentavam sua vontade de morrer.
As propagandas de remédios começaram quando Wilson ficou muito gripado com uma variação do vírus H1Z3. O mercado chegou a oferecer mais 5, 10 e até 20 anos de vida, por preços que poderiam ser parcelados igualmente por 5, 10 ou 20 anos. Mais que isso não ofereceram, pois sabiam que Wilson não teria condição de pagar nem mesmo com muita ajuda da família.
Não preciso dizer que Wilson achou isso o cúmulo. Calcularam a probabilidade dos antibióticos não obterem o efeito esperado e fizeram a oferta infame de prolongar a vida, mesmo que continuassem oferecendo placebos. “Um pulmão novo era o mesmo que 10 anos de vida!” – Disseram. Dezenas de amigos e parentes ligaram para oferecer condolências, ajuda financeira e apoio emocional, mas tudo o que Wilson queria saber era por qual motivo não havia como salvá-lo com remédios normais, mas havia como proporcionar alguns anos a mais de vida. Se qualquer outro procedimento não alcançaria resultados, não fazia nenhum sentido continuar oferecendo remédios inúteis como estavam fazendo.
Wilson assistia a propaganda na televisão com repugnância. Ela explicava em trinta segundos todas as bases científicas dos procedimentos de troca de órgãos, mas Wilson concluíra no fundo de seu coração, o único lugar onde ainda lhe restara um pouco de privacidade, que tudo o que queriam era dinheiro. Trocavam tudo o que conseguiam trocar, quantas vezes fosse possível, e só desistiam quando os pacientes fossem apenas um ajuntamento amorfo de matéria orgânica sobre a cama.
Wilson pesquisou na rede e descobriu mais de 750 milhões de casos exatamente iguais ao seu. Eram 750 milhões de Willians Wilsons em todo o mundo. Mais da metade destas pessoas compravam anos á mais de vida, mesmo sem terem dinheiro para pagar por este luxo. O restante morria, ou se candidatava como cobaia de experimentos científicos que procuravam antibióticos, ou novos órgãos. “Mas, no fim, todos morrem.” – Concluiu Wilson.
William Wilson não quis aceitar dinheiro dos familiares e não quis se endividar. Quando parou de tomar os placebos, o mercado começou a oferecê-lo planos funerários. Havia planos de todos os preços, e Wilson ficou feliz. “Pelo menos é algo que eu vou usar por muito mais tempo.” – Wilson escolheu um plano que podia pagar, mesmo com os protestos dos familiares, que queriam que ele aceitasse o tratamento oferecido, e pagou feliz. Finalmente, era a última propaganda que ouvira. Desligou todos os aparelhos eletrônicos de sua casa, ficando completamente incomunicável, e esperou a morte chegar.
William Wilson Morreu aos 92 anos, velho e saciado em dias.

Comentários

  1. Gostei muito, Zé!!

    O triste do seu belo conto é que ele retrata um futuro bastante plausível... Pessoas vivendo mais, sob uma vigilância maior, e uma previsibilidade idem.

    Parabéns!

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