Bolívar - Capítulo 2

Bolívar

Capítulo 2



Todas as pessoas honestas são iguais. Mas nós, os corruptos, somos corruptos cada um à sua própria maneira. Por exemplo, eu nunca me vi na pele daqueles lobos tosquiadores das igrejas evangélicas que arrancam quase até a roupa do corpo daquelas velhinhas beatas. E beata é uma palavra velha, e quase não a escutamos hoje em dia, mas, as igrejas evangélicas estão abarrotadas de pessoas beatas. Eu nunca roubei velhinhas beatas. Nunca participei de esquemas de desvios de dinheiro de merenda de escolas, nem de máfias de desvios de verbas de hospitais. Sempre considerei isso demais até para mim.

E o pior é que outro dia, me deixei ser arrastado por um amigo, e entrei numa igreja evangélica. Eu precisava da assinatura dele para dar prosseguimento a negócios lucrativos. Mas, ele estava muito mais interessado na minha conversão ao evangelho. Fiz uma concessão e o acompanhei. Não sabia que dentro de uma igreja pentecostal, ou neopentecostal, sei lá, sempre há um redemoinho. É que assim que coloquei o pé dentro da igreja fui arrancado do chão por um tipo de vento, e senti como se meu peso se tornasse nulo, e eu começasse a flutuar.

Havia no templo cerca de mil pessoas e todas gritavam e balançavam seu corpo num tipo de transe sendo guiadas pelo pastor no centro do palco, que regurgitava uma mistura do que eu acho que eram textos da Bíblia com auto-ajuda e discurso de vendedor. O pastor sacudia o corpo muito mais que qualquer outro ali, como se ditasse o ritmo que os demais deviam manter. Ele dizia sentir que o espírito santo de Deus estava presente, e a cada duas ou três palavras repetia sempre "amém". 

Havia, também, uma banda tocando hinos religiosos num volume que poderia causar inveja em uma banda de heavy metal. E o pastor parecia o vocalista da banda, gritando que com toda certeza o espírito santo estava naquele lugar. Eu me lembrei da Orgia-Bugia de Huxley, sem a parte do sexo, onde todo mundo estava meio enfeitiçado pela aura criada para induzir as pessoas a abrirem a carteira no auge da emoção.

Alguns faziam transferências bancárias via PIX ou cartão de crédito, mas, os mais velhos contribuíam com cédulas amassadas, que revelavam ser as últimas posses de algumas dessas pessoas, que se seguravam a essas notas como um desafortunado se segura a algo que o impede de cair na beira do precipício.

"Quanto maior a oferta, maior será o perdão dos pecados!" - disse o vigarista sagrado. 

Ao não ser tocado pela divindade, chegou ao fim minha experiência religiosa. o redemoinho começou a perder força e fui sentindo meu corpo ganhar peso novamente. Era como se o espetáculo não conseguisse me conduzir ao máximo da fruição possível, e eu não pudesse me manter nas alturas, assim como os demais. No chão, nesse chão firme e seguro, chão bom, onde tudo é sólido e claro, onde as estratégias mais sutis de dissimulação me eram iluminadas como um dia de sol, eu pude sentir as coisas e ver onde elas começam e onde terminam.

O início era a percepção de que havia uma necessidade de mercado. Todas as pessoas, em maior ou menor grau possuem uma dependência que não se limita apenas a satisfazer necessidades físicas, como beber água, se alimentar ou fazer sexo. Sempre houve algo mais no espírito humano que criava necessidades emocionais e espirituais. Os líderes religiosos se apresentam como fornecedores de produtos abstratos, intangíveis e impalpáveis que satisfazem um pouco essa necessidade, e que em troca dos seus serviços aceitam suaves prestações eternas.

Estávamos no meio de uma fileira de cadeiras. Nas fileiras da frente e detrás da nossa todos estavam de pé gritando aleluias. Pelos corredores de ambos os lados da nossa fileira chegaram homens jovens com cestos de vime pequenos para as pessoas que não fizeram donativos por meios mais modernos não perderem a oportunidade de fazerem suas ofertas sagradas ao Senhor.

Quando o cestinho chegou nas pessoas mais próximas, ao meu lado, vi algumas colocarem nele notas de cem e cinquenta. Tinha até bolinhos de dinheiro presos com elástico. O pastor pedia para colocarmos no cesto tudo o que pudéssemos. Deus havia feito muito por nós e tudo o que podíamos dar ainda era pouco e não cobria a dívida que tínhamos com ele 

"Existe uma animosidade contra a obra de Deus. As pessoas estão com muita relutância em fazer ofertas! O exército do mal tenta impedir a obra do Senhor de prosseguir, de prosperar, de encontrar almas que precisam ser salvas pra Jesus! Então, se você tiver mil reais, dê mil reais pra obra de Deus!
Se tiver novecentos reais, dê novecentos reais…” - Prosseguiu diminuindo o valor para oitocentos, setecentos, seiscentos, até chegar a cem e cinquenta. 

Ele dizia saber que muitos ali podiam doar, mas, não queriam. E que enquanto as pessoas não entendessem que precisam dar pra Deus tudo o que tivessem, não íam ser abandonados pelo encosto na sua vida. Começou a falar de demônios com mais propriedade do que nos raros momentos que falou de Deus.

O miserável me fez sentir vergonha, e eu pensei em dar alguma coisa pra não ficar muito atrás daquelas pessoas ao meu redor. Era assim que tudo acabava em uma igreja evangélica. Um teatrinho chato e sem graça onde no final o ator pedia dinheiro pra platéia.

Peguei minha carteira e fiquei relutante se dava cinquenta, cem, duzentos. Duzentos parecia ser um valor alto demais por aquele espetáculo ruim. Ao mesmo tempo, cinquenta parecia muito abaixo do que eu podia dar, então fiquei com medo de as pessoas ficarem me olhando e achando que eu era sovina. Eu não era um beato, e se não fosse a vergonha não daria nenhum centavo para aquele charlatão.

"Não precisa se preocupar com isso. Eu te convidei pra vir aqui, então, eu vou fazer a oferta!" - disse meu amigo segurando a minha mão, me impedindo de tirar qualquer dinheiro da carteira. - "Eu nunca vou na casa do Senhor com as mãos vazias, igual Davi."

Eu não sabia quem era Davi. Quer dizer, tinha ouvido falar sobre Davi ter enfrentado um gigante chamado Golias, mas, não sabia que relação essa história podia ter com dinheiro. Até hoje não consegui encontrar relação entre Davi, Golias e o dinheiro na casa do Senhor.

Pegou quinhentos reais e depositou no cesto transbordante, que já estava bastante cheio de cédulas de todos os valores. Reparei uma movimentação constante de homens recolhendo o dinheiro dos cestos em bolsas grandes de tecido grosso. Parecia haver várias bolsas coletoras. Elas não permitiam saber quanto havia em seu interior, mas, com certeza, era muito dinheiro. Depois desse culto haveria outro. O negócio era muito lucrativo.

De repente, de mil lugares, dos cantos escuros nos altos, dos vidros pintados das janelas, das caixas de som, das telas gigantes de TV, dos estofados das cadeiras, dos instrumentos musicais da banda de gospel metal, saiam figuras tremulantes de homens que tinham em sua face a marca da corrupção moral. Eram monstruosos, figuras inorgânicas, mas em suas contorções acentuadas, em sua fisionomia em zigue-zague, pareciam pertencer a cada molécula daquele lugar.

Eram fantasmas de antigos pastores, pregando a salvação com uma mão, e oferecendo a ruína financeira disfarçada de prosperidade com a outra. E toda essa consciência se apoderou de mim rapidamente. Foi como se a experiência religiosa se completasse apenas com a visão etérea desses homens pedindo dinheiro e oferecendo o céu, mesmo que isso fosse algo que eles não conheciam e jamais iriam ter.

"Vamos colocar nos cestos as nossas ofertas. Você que é dizimista, dê o seu dízimo. Você que é ofertante, traga a sua oferta. E você que não é nada, não traga nada, não dê nada , permaneça onde você está, como você está. Continue sendo uma pessoa ingrata, uma pessoa desprezível aos olhos de Deus, que nem deveria estar aqui nesse local de adoração!" - dizia o pastor real, enquanto os pastores espectrais continuavam pairando por todo o redor, alimentados pelas palavras de sua contraparte real. 

"As cadeiras, o templo, o terreno, a energia elétrica, tudo é pago com o dinheiro das ofertas, e se você não dá nada, você não tem caráter! Você é desonesto! 'Ah, eu não dou oferta porque esse pastor deve ser ladrão!' Se eu sou ladrão porque roubo as ofertas, a Bíblia diz que você é ladrão porque rouba de Deus por não dar a oferta que por direito é do Senhor! Se eu sou ladrão, então, nós somos colegas!" - Eu nunca ouvi tanta ladainha na vida.

Eu estava cansado da barulheira dos instrumentos musicais e da gritaria de todo mundo querendo falar ao mesmo tempo. E, nesse momento em que a cabeça começou a doer com força, com a mesma velocidade em que apareceram, como se sua missão fosse cumprida, cada fantasma implausível, cada pastor impossível, cada lembrança de outros ladrões de templos sumiu. Tudo desapareceu como se eles tivessem sido apenas um efeito especial de Hollywood, esgotando sua existência em um ato de mímica do pastor ilusionista.

Homem corrupto, que não gosta de lidar com criaturas tão corruptas como eu mesmo, mas, que fingem uma aura de inocência, não aguentei ficar ali mais nenhum minuto, tive um movimento instintivo, expliquei que precisava de um ar fresco e uma água gelada. Pedi licença umas dez vezes até conseguir chegar ao corredor, fechei a porta atrás de mim e me vi sentado do lado de fora, olhando para o chão que não rodava, o doce chão quieto e dourado pelo sol que passava por entre os prédios e me esquentava, e esquentava o chão.

Fiquei olhando para o chão, que resistia às solas dos calçados, que não vai nem vem, como os homens passantes, que está ali e não faz gestos nem diz nada. Olhava para o chão, mas contemplava a minha alma. Ela me mostrava que toda aquela estrutura era corrupta como, talvez, eu nunca tivesse sido. Senti-me pequeno e sozinho. Mas, de onde eu estava sentado dava pra ver o movimento inquieto das pessoas indo e vindo na rua. Um milhão de pessoas corruptas, como todos nós, ainda eram menos sujas que aquele pastor.

A tudo o que vi na igreja atribuo ser o que significa ter perdido a compostura.

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