Xaropinho do Capeta

Xaropinho do Capeta, J. C. Peu



Odiava ir à escola. Fora as brincadeiras, a merenda e o doce de leite pastoso Xamego Bom, servido como sobremesa numa colher de sopa bem cheia, nada mais me interessava. Eu subia numa mangueira, que tinha os galhos estrategicamente posicionados pela natureza para facilitar a fuga de alunos e satisfeitos, e sempre inventava uma desculpa para chegar mais cedo em casa.

As brigas e a bagunça da turma do Fundão também me interessavam. Eu gostava de fazer bullying com meus colegas. E como sempre fui alto e forte em comparação com os outros meninos da mesma idade, poucas vezes eles faziam bullying comigo. Eu sofria bullying apenas dos garotos mais velhos das outras turmas. Vários deles me chamavam de 'Testão de Amolar Facão', 'Beiço de Macaco', e até de 'Filhote de mico-imã'.

Eu tinha medo deles. Procurava me esconder e tentar passar desapercebido quando eles estavam por perto, mas, meu tamanho não ajudava. Minhas pernas eram longas varas de bambu que não permitiam que eu entrasse em qualquer brechinha, e minha cabeça era tão grande que, mesmo se surgisse um esconderijo possível, provavelmente eu ficaria entalado pela cabeça. 

Eu nunca conseguia me esconder dos meus algozes. Maiores e mais fortes, eles pareciam predadores que caçavam pelo cheiro. Sentiam o cheiro do medo. Eu sentia a emanação volátil do bullying, cheiro que pra mim era desagradável, como o de peixe podre, mas, para eles era um aroma como o de um carro novo, que suscita a sensação de superioridade e distinção. Eu também queria experimentar essa sensação. Não queria ficar sempre com o cheiro de peixe.

Entretanto, na minha turma havia a Luciana. Ela era negra, pobre e criada apenas pela mãe. Eu era negro, pobre e criado apenas por minha mãe. Tínhamos muito em comum, mas, eu tinha que passar para outra pessoa a tristeza e o desapontamento de ser humilhado pelos outros, e escolhi a Luciana. Ela podia me dar o que eu precisava, o cheiro dos vitoriosos!

Ver a Luciana chorando após toda galera da bagunça decretar que o seu apelido seria Xaropinho do Capeta, inspirado no programa infantil do Sérgio Mallandro, Oradukapeta, foi, para mim, uma alegria. Na abertura do programa, tinha um capetinha fazendo traquinagens. Dizíamos que ela se parecia com ele. Isso é uma das lembranças mais impactantes da minha infância, chamar a Luciana de Xaropinho do Capeta até ela chorar todos os dias era a única coisa que me fazia escapar do cheiro do peixe.

Os garotos zombavam de mim não apenas por eu ser desengonçado. Todos eram assim também. Hoje eu percebo que zombavam de mim por eu ter cabelo duro, lábios grossos, testa grande, ficar com as pernas russas de poeira e por usar roupas velhas. Eu era preto e pobre.

E eu zoava a Luciana para descontar em alguém mais fraco do que eu a minha frustração, numa tentativa de passar para outra pessoa a tristeza de ter sido maltratado, mesmo que essa pessoa não merecesse passar por isso. E tudo o que eu zombava nela eram coisas relacionadas com o fato de ela ser uma menina negra. A gente zombava seus cabelos, seus lábios grossos, sua testa grande, suas pernas russas cheias de poeira e o fato de ela se vestir com roupas velhas.

Zombavam de mim por eu ser negro e pobre, e eu fazia o mesmo com a Luciana por ela ser negra, pobre e menina. E dizíamos que ela era igual a um diabinho. Isso não é algo inocente, e nunca devia ter sido normal. É vergonhoso, mas, acontecia quase todo dia por muitos anos na escola. Eu odeio a época da escola.

Outro dia, enquanto caminhava no bairro, no sábado pela manhã, para ir até a rua da feira comprar 1 ou 2 quilos de pescadinha, vi de longe a Luciana andando de mãos dadas com seu filho e seu marido. A Rua da Feira é uma rua com algum comércio. Uma padaria, açougue, peixaria, petshop, lan house, mas, nenhuma feira. Nem sequer uma barraquinha vendendo laranja e banana. O melhor lugar que encontrei para esconder-me e observá-los foi atrás de uma árvore. Fazia muitos anos que não via a Luciana.

Quase chorei de emoção ao lembrar do doce pastoso Xamego Bom da época do Colégio Estadual São Judas Tadeu, quase 30 anos atrás. Comprei muitos doces de leite no decorrer dos anos na tentativa de provar o mesmo sabor do doce da infância, inclusive da mesma marca, a dos dois coraçõezinhos vermelhos, mas, parece que o sabor imaginado nunca será o mesmo do sabor real. Tudo é envolto em saudosismo e nostalgia, de modo que as memórias não são confiáveis. Lembrei-me, também, das brincadeiras, das bagunças e da Xaropinho do Capeta.

Odiava ir à escola, pois, um dia é da caça e outro do caçador, como diz o velho ditado popular. Quando, numa aula de geografia, o professor cuspiu saliva e giz perguntando o local de nascimento de cada aluno na sala, uma sensação como que de choque elétrico percorreu todo o meu corpo e tremi de medo. Até hoje me pergunto por qual motivo falei a verdade naquele momento. Deveria ter dito que nasci por ali mesmo, que era papa-goiaba.

Quando respondi, meio sem graça, "São Lourenço da Mata, Pernambuco", todos riram de mim até sentir a barriga doer. São Lourenço da Mata. Acharam que São Lourenço era uma piada. Todos se morderiam de inveja se soubessem que no distante ano de 2014, alemães, italianos, franceses, ingleses, e mais turistas de mil outros lugares, andariam nas ruas de São Lourenço da Mata em direção ao estádio de futebol para assistir algum jogo da Copa do Mundo.

Na sala de aula, até a Xaropinho do Capeta riu de mim. E foi bem feito. Toda vez que lembro dessa história eu me pergunto se não deveria pedir desculpas por ter sido um idiota. Talvez ela nem se lembre disso. A gente tinha 8 ou 9 anos na época. Mas, ali, escondido atrás da árvore, quase da mesma forma que eu me escondia quando mais novo, eu sentia vergonha dessas lembranças, e sentia o cheiro de peixe que já devia ter levado pra casa.






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