O Dia Que Carla Camuratti Achou Um Sorriso - Parte Final.

(J. C. Peu)

No interior do colégio a mandíbula dentro do saco plástico parecia sorrir e, se sorrir fosse mostrar os dentes, era exatamente isso que faziam aqueles 30 dentes ensangüentados. Sorriam debochando de uma sociedade que já ultrapassou a barreira entre selvageria e civilidade há muito tempo, mas que não tinha coragem o bastante de admitir este fato.
Carla foi levada para casa pela própria diretora e, do interior do carro, olhava os homens armados que impediam o direito dos homens desarmados ir e vir, vir e viver. Num esforço descomunal, verteu lágrimas como sacrifício em favor dos pecados do mundo. Ela como que torcia sua retina em busca de mais algumas gotas de lágrima. Já havia chorado muito naquele dia, parecia não ter mais gota alguma de lágrima em seus olhos. Sentia-se cansada. Não lutaria mais contra o mundo á sua volta. Sentia-se pronta para conformar-se com o mundo à sua volta passivamente. Chegou á conclusão que sua luta muda contra o sistema, inevitavelmente, resultaria em derrota.
Ao descer do carro na entrada da comunidade onde morava, não queria ter de responder perguntas sem sentido, e mesmo que estivesse decidida reagir ao mundo de forma passiva, poderia começar a agir assim no dia seguinte. E, quando os bandidos puseram-se em seu caminho e lhe perguntaram “em quê o movimento de contracultura tinha contribuído para o pensamento de responsabilidade social das empresas transnacionais”, Carla não suportou a hipocrisia do mundo e deu um grito com todas as forças que lhe restavam. Libertou de uma só vez toda a insatisfação de ser cerceada no que tinha de mais precioso, sua liberdade. Sua insatisfação quase se fez um objeto concreto ao atingir os homens armados parados á sua frente.
- Saiam da minha frente, seus abutres! Não responderei ás suas perguntas descabidas! Monstros! Imbecis! Entrar em minha própria casa sem dar satisfações é meu direito! Nunca mais vou responder pergunta alguma! Liberdade ou morte!
No momento em que estas palavras foram articuladas pelos músculos na garganta de Carla, a terra parou em seu eixo e, junto com ela, pararam todas as pessoas que passava ali naquele momento. Todos ficaram na expectativa de verem como seria a reação dos facínoras. Algumas mulheres de idade indefinida com lenços coloridos na cabeça e vestido de chita começaram a chorar e se bater em lamento, como aquelas matronas do Oriente Médio, na verdadeira Faixa de Gaza, que choram e se batem quando o exército de Israel mata seus jovens, que segundo elas, não tinham envolvimento com o terrorismo. As mulheres daqui sofriam por antecedência o fim, que davam como certo, da pobre mocinha que ousava desafiar o tráfico.
Mas, sabemos que lei é lei, e nenhum meliante ali seria tolo o bastante para desobedecer a uma lei do chefe do tráfico. Assim, nada aconteceu. Nunca mais pararam Carla ao entrar ou sair da comunidade. Era do grito de liberdade que ela precisava para que o nó que sentia na garganta fosse desfeito. De certo que tudo o que podia conseguir era uma pseudoliberdade amorfa, mas, já era algum começo. Melhor uma liberdade ilusória do que nenhuma esperança.
Os dedos indicadores e mandíbulas continuaram a visitar os sonhos de Carla por muito tempo. Os zumbis de jaleco se tornaram monstros cada vez mais pavorosos, e ela acordava desejando nunca ter ido ao Anatole naquele dia fatídico.
Anatole, Anatole! Pobre Anatole! Pequeno entre os grandes e eternamente relegado ao esquecimento. Nunca sairá de ti um doutor em literatura francesa, por exemplo. Mas, como já disse uma vez alguém muito especial: “improvável não é impossível!” Quem sabe algum dia Carla não mais sonhe, e homens não mais morram!
                                                     Dedicado à Eliane Costa.

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