O Dia Que Carla Camuratti Achou Um Sorriso - Parte 4.


(J. C. Peu)
   Havia pouco tempo que Carla estava estagiando no colégio Anatole France. Os longos corredores do antigo prédio, recentemente reformado, mesmo que bem iluminados causavam-na sempre certa cisma. O medo ia embora  na presença de outras pessoas que todos os dias eram quase uma multidão. Alunos, professores, merendeiras, faxineiros, inspetores, etc...
Neste dia específico, não havia alunos nos corredores. As aulas foram suspensas e muitos funcionários aproveitaram para não trabalhar e voltaram para suas casas. Os corredores estavam vazios, Carla caminhava temerosa contando seus passos como quem se apega à esperança de encontrar um tesouro, rumo ao gabinete da diretora. Queria perguntar se poderia ir embora, e se aquelas horas que deveria fazer naquele dia seriam descontadas. Caminhava vacilante quando da porta de uma das salas de aula saiu um homem vestido com um guarda-pó branco, onde se lia alguma coisa no bolso do lado esquerdo do peito, mas que ela não conseguiu ler o que era. O homem vestia luvas de procedimentos médicos-cirúrgicos e trazia na mão esquerda um saco transparente que continha em seu interior um dedo indicador sujo de sangue, mas já ressecado. O homem era da perícia e assustou-se, também, ao ver uma jovem surgindo de forma inesperada em sua frente. Para aumentar o susto do homem, Carla gritou histérica como as mocinhas em filmes de terror quando estão prestes a morrer.
O grito de Carla ecoou por todos os corredores vazios, e seu eco entrou sem pedir licença poética em todas as salas de aula. No mesmo instante que ela virou-se para o lado oposto ao qual caminhava, visando correr para se afastar do legista, deparou-se com vários outros homens. Eram policiais e outros legistas, além do inspetor do colégio e da diretora, mas, a sua mente, perturbada com o susto que acabara de levar, via apenas vários outros homens vestidos com guarda-pó portando vários outros sacos contendo indicadores. Desmaiou.
Ao acordar, a primeira imagem vislumbrada foi o rosto rotundo da diretora bem perto do seu. Dizia de forma doce seu nome enquanto passava docemente as mãos em seus cabelos. Evocava calma, mesmo naquele instante tão delicado para uma demonstração de calma, ao pegar suas mãos e tentar lhe passar força.
Com todo este carinho, foi lembrando pouco a pouco a causa do desmaio. Viu, novamente, como que num flash, os homens, todos saindo ao mesmo tempo das salas do imenso corredor, cada um com um saquinho com um indicador em seu interior. Suas pupilas se dilataram e ela olhou rapidamente para todos os lados. Estava muito assustada. Mas não havia homens nem dedos indicadores decepados naquele ambiente. Tais imagens pavorosas davam lugar a armários-arquivos, paredes com quadros que reproduziam obras de Monet, alguns vasos com belos arranjos de flores, e o tom plácido em que foram pintadas as paredes. Agora, reinava novamente a paz.
Ficou a par de tudo o que acontecera, e envergonhou-se dos risos que acabou causando aos legistas e aos policiais. Tomou um copo de água com açúcar e começou a compreender que chacinas são coisas tão comuns quanto o ar que se respira, estando em todas as partes da cidade. Mas, nada disso era motivo para desmaios, nada disso é um fato social significativo no subúrbio.
A diretora era uma mulher de rosto redondo, mas, bela. Embora estivesse envelhecendo e as marcas da passagem do tempo estarem se fazendo bastante visíveis, ainda era bastante sensual. Usava óculos como todos os professores deste mundo, e conseguia passar muita confiança e ser persuasiva ao falar. Ao mandar Carla levantar-se e ir até o banheiro, conseguiu ser persuasiva. Disse que era para ela melhor recompor-se, e ir para sua casa, pois naquele dia não haveria aulas. Disse, também, que não se preocupasse com as horas do estágio, ela assinaria como se aquele tivesse sido um dia normal.
Quando saiu do gabinete, um dos sacripantas que a assustou ao vir em sua direção com um pequeno saco transparente com um dedo sujo de sangue dentro, desculpou-se pelo susto que lhe dera e lamentou o fato de que ela veio a desmaiar. Carla aceitou as desculpas, não era culpa do homem o fato de ela não estar preparada para ver um dedo decepado. Se o corredor estava mal iluminado, isso também não era sua culpa.
Carla ainda estava meio tonta, e ao andar pelo corredor do colégio, mesmo que o prédio tenha passado por reforma recentemente, parecia que ela via musgo e infiltrações que vazavam água continuamente no teto e nas partes superiores de ambos os lados do corredor. Era como se tivesse entrado em um outro mundo, e nesse mundo estranho, a luz originava-se de velas em candelabros de cobre. As velas, com suas chamas bruxuleantes que deformavam todos os objetos que tocavam, produziam, pelo seu halo projetado nas paredes, sombras ameaçadoras num tom que misturava azul da Prússia com terra de Siena queimada.
A jovem sentia medo e questionava-se quanto a se dar o próximo passo era algo sensato. Sentia o suor escorrendo por seu rosto e por suas pernas. O seu coração estava acelerado. Seus olhos tentavam compensar a miopia, o astigmatismo e a escuridão por se dilatarem. Não sentiu o susto precursor do desmaio e, por este motivo, deu um passo incerto rumo à escuridão que se pronunciava infinita e inevitável. Antes de dar mais um passo, pensou que cairia num buraco, talvez numa masmorra. Pensou que estava num velho castelo medieval. Mas, resolveu dar o passo, posto que já fizera este percurso da sala da diretora até o banheiro dos professores infinitas vezes e nunca, nem uma única vez, reparara na escuridão, no musgo, nos vazamento ou nas velas. Decidiu que não devia confiar completamente em seus olhos, e deu o passo rumo à escuridão infinita. Se viesse a cair, era porque sonhava, e se estivesse sonhando, acordaria deste pesadelo em sua casa, com toda a proteção que uma cama pode proporcionar.

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